Por Carolina Horstmann
Começamos estas últimas décadas com acontecimentos sociais fortes. Tínhamos por costume nos perguntarmos: Onde é que estavas tu o 11 de setembro? E o tema do World Trade Center deu passagem para o esquecimento, ficou deixado para os comentários e as trocas de opiniões numa noite de canecos de cervejas. Ficamos cheios de palavras como: Talibã, terrorismo, Osama bin Laden, etc... intoxicamo-nos de notícias e novidades.
O ano de 2003 poucos se perguntaram pelos acontecimentos no Iraque após a queima da Biblioteca e a perda de inúmero material do Museu. Muitos menos souberam onde foi que começaram a aparecer os “souvenirs” que tiraram dum país em guerra um grupo de jornalistas duma conhecida cadeia de notícias. A nossa memória sei-que dura o que dura um segmento do noticiário...depois...nada.
Agora hás de te perguntar, com certeza: Como foi que não me inteirei do da Biblioteca do Cairo? São as notícias que correm esta semana (pelo menos por alguns média digitais). O fogo começou nas proximidades da Biblioteca e os manifestantes (enquanto eram atacados pela polícia antidistúrbios) tentaram durante horas resgatar volumes, uma após outro de entre as lapas.
No Instituto Egípcio do Cairo, perderam-se quase 160,000 exemplares, muitos deles únicos. Entre eles podemos contar a obra que Napoleão encomendou a um grupo de cientistas, a chamada Description de L´Egypte, volumes ilustrados por uns 2000 desenhadores e gravadores, que demorou quase 20 anos em ficar rematada..
Como é possível que continuem a acontecer uma e outra vez esses mesmos eventos, ainda com as medidas atuais para a proteção do património mundial?
Sobre a perda da memória.
Se há algo que chama a atenção a dia de hoje, é o letargo que nos corrói. Chega só com ouvir qualquer conversa num lugar público para confirmar o sentimento. Adormecidos, aletargados. Confiados num sistema que dá e responde a todas as nossas necessidades, anestesiados até a medula.
Geração após geração avança este processo de desmemorização perdendo o contato com a nossa história num constante puxar da sociedade atual para nos preparar e nos educar constantemente de cara “ao futuro”. De que jeito havemos de ter futuro se não estamos conetados com o passado, se a história foi apagada, anulada ou re-escrita desde tempos antigos?
John Milton no seu “Areopagítica”, afirmava: “matar um bom livro é quase matar um homem”. Não deixo de pensar que se o aplicarmos à Galiza teríamos os campos cheios de corpos. Não me estou a referir só aos livros destruídos pelo lume ou o deterioramento mas a toda a informação que durante séculos foi silenciada, apagada completamente da nossa história, negada aos estudantes nas suas aulas...
A aniquilação da memória v/s a tentativa de preservação da documentação.
A UNESCO, com o seu programa “Memória do Mundo”, faz uma tentativa de preservar e difundir a documentação mundial, sobre tudo aquela que se acha em lugares de conflito bélico ou destinada a desaparecer pela passagem do tempo. Tendo a encomenda, também, de sensibilizar aos cidadãos sobre a importância que tem para os povos e para os governos este património cultural.
Estabelece este programa quatro razões fundamentais da destruição dos livros:
1. Catástrofes naturais (inundações, terramotos e incêndios)
2. Catástrofes provocadas pelo homem (guerras, prejuízos, perseguições, lutas religiosas...)
3. Inimigos naturais (Insetos, umidade, meio ambiente, contaminação)
4. Papel autodestrutivo (excesso de acidez nos textos actuais)
Estamos perante uma louvável iniciativa, não há dúvida, mas... soluciona realmente os nossos problemas de fundo? Cria reação nos governos? Mobilizam-se as organizações para salvaguardar esse património? Informa-se ao conjunto dos cidadãos? Consegue-se a tomada de contato com as pessoas?
Segundo diz o bibliotecólogo Fernando Báez no seu livro “Historia Universal de la destrucción de libros”, que o livro não se destrui como um objeto físico, mas é que se procura a sua eliminação como vínculo de memória: “O livro dá volume à memória humana”. É este vínculo livro-memória o que dá a força e a constância ao património cultural dum povo ou uma nação. É este património o que conforma o sentimento de afirmação e pertença. A destruição dum livro, portanto, faz-se com a intenção de aniquilar “o património das ideias duma cultura inteira”.
Por cada alínea apagada do nosso passado histórico temos uma alínea menos de verdade num presente que não sabemos compreender. Uma história atual que somos incapazes de enxergar com senso cabal por causa do puzzle aparentemente incompleto no que nos mexemos.
A Galiza tem-se visto enfrentada à luta de poder das altas cúpulas político-religiosas, enfrentando-se com homens profundamente dogmáticos aferrados a um livro irrefutável (e aos seus próprios interesses mundanos). Um livro sagrado que não aceita discrepâncias, que apaga todo posicionamento contrário, que elimina ou tergiversa as verdades que deram alicerce e forma ao Gallaeciense Regnum.
Amputação da memória Galega.
O caso de Galiza, pode ter por resumo “a história contada pelos vencedores”, “Santos senhores” com poder para escrever e re-escrever a vontade. Cronistas, historiadores, eclesiásticos e hábeis políticos que tiveram a encomenda de eliminarem ou manipularem, anulando o nome da Galiza de todos os documentos possíveis.
Figuras salientáveis nesta eliminação de documentos foram: Lucas de Tui, Pelayo de Ovedo e Rodrigo Ximenes de Rada. Todos do S. XII ou XIII a partir dos quais toda contrução histórica feita em adiante ignora Galiza e põe no seu lugar uma Castela neófita e sem experiência. Numa recontrução historiográfica peninsular que a dia de hoje impede que qualquer estudioso chegue a reconhecer a Galiza como o primer Reino da Europa Medieval, ainda existindo Roma.
Diz-nos isto José Manuel Barbosa no seu artigo “A mudança de Paradigma e a recuperação da memória histórica da Galiza”.
· Durante a ocupação romana, a Gallaecia foi uma das províncias do império mais sucedidas economicamente, culturalmente e do ponto de vista artístico sendo o elemento indígena fulcral. Figuras como Prisciliano, Egéria, Paulo Orósio, e Idácio Lémico foram prova da importância da Nossa Terra. A figura de Prisciliano poderia equiparar-se a outras paralelas dentro do mundo céltico e atlântico como São Patrício, São Davide ou Santo André. Aliás, Prisciliano, pode dar pistas a respeito do fenómeno Jacobeu já que há quem assegura que quem realmente está (ou estava) em Compostela não era São Tiago, mas Prisciliano. As provas não são determinantes, mas a lógica leva por esse caminho.
· Os suevos, um povo germânico dos mais evoluídos e “romanizados”, constituíram na Gallaecia, a zona mais rica e desejável para eles da península, o primeiro Reino independente de Roma com um projeto militar e político de unificação peninsular com capital em Braga e com o apoio, colaboração e implicação dos galaicos que o sentiam como seu. A importância dos mesmos é grande: Com eles a Gallaecia constituiu-se no primeiro Reino medieval da Europa; foram os primeiros em emitirem moeda, o Sólidus suevo; os primeiros em legislar, administrar e construir um Estado; o primeiro Reino cristão após Roma; os criadores da mal chamada “letra visigótica” já que na realidade começou a existir na Gallaecia antes da chegada dos godos; os criadores da primeira arte pré-românica com elementos como o chamado arco de ferradura que na historiografia castelhanista diz-se visigodo; os primeiros em assumirem o cristianismo católico antes do que qualquer outro povo germânico, por isso a sua aceitação pelos galaicos. Na historiografia castelhanista diz-se que foram os visigodos os primeiros em aceitarem o catolicismo...
· Durante a unificação suevo-visigótica a Galiza manteve a sua personalidade política e administrativa, cultural, social e económica, contrariamente à ideia castelhanista dum Reino unificado visigótico com capitalidade centralista em Toledo e primeira amostra de Estado Espanhol pan-peninsular. Os Reis tinham o título de “Reis de Espanha, Galiza e a Gália” entendendo que a Galiza e a Espanha eram realidades diferentes. A Gália num princípio ocupava a actual Ocitânia para posteriormente ficar só na Septimánia ou Narbonense.
A dia de hoje, nomear acontecimentos como estes em determinados contextos é motivo de censura, qualificando a quem defende isto como de radical ou no melhor dos casos como anti-espanhol. É por acaso mais sensato guardar os acontecimentos passados para não perturbar a “aparente acálmia” do presente?
Devemos por acaso mantermo-nos na indiferença? Ficarmos com as verdades à metade? Permitir com que os acontecimentos vitais na memória histórica do nosso povo se passem desapercebidas para uma população necessitada de conhecimentos?
Não podemos alimentar a desídia, não podemos deixar nas mãos de organizações muito afastadas de nós o património que vai ficando sem antes escavar e achar a verdade das nossas raízes. Tudo é vital, tudo é um elemento precioso, desde as histórias dos vencedores até os relatos familiares tão ricos em tradição e memória histórica. É tempo já de cada um de nós começar a reconstruir a nossa própria história pessoal e grupal e todos em conjunto a nossa história nacional, tão maltratada, tanto pelos poderosos que no-la escrevem como por nós próprios.
O importante, após reflexionarmos sobre estes pontos em questão, é sabermos até onde estamos dispostos a chegar e até onde somos capazes de permitir a ignomínia da desmemória e da autodesidentificação.
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