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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

HISTÓRIA DA LÍNGUA: Antes do Latim


 Por José Manuel Barbosa

Dedico este artigo à boa gentinha de Pitões das Júnias e à gente do Barroso

Parece ser que o território galaico-lusitano anterior à conquista romana estava ocupado por diferentes povos de raiz indo-europeia e de fala provavelmente proto-celta.

Se repararmos na configuração étnica desses territórios teríamos de norte para sul os seguintes: os povos ártabros (Martins, Higino 2008) ou posteriormente chamados pelos romanos de galaicos lucences que ocupariam a atual Galiza norte (províncias da Corunha, Lugo e norte de Ponte Vedra); os povos gróvios (Martins, Higino 2008) ou galaicos bracarenses (atuais províncias galegas de Ourense e sul de Ponte Vedra junto com todo o norte de Portugal até o Douro); e os povos asturos (atuais Astúrias, Leão, a Zamora do norte do Douro e a parte oriental de Trás-os-Montes).

Ao sul do Douro habitariam os lusitanos até o Tejo incluindo no seu espaço territorial a Estremadura espanhola atual ao norte desse rio. Para sul um conjunto de povos de nome genérico célticos por todo o Alentejo e ficando para o extremo Sul os cônios ou cinetes no Algarve de estirpe celta segundo os autores clássicos.

Segundo os estudos recentes baseados nos achados litográficos de Lamas de Moledo (Évora), Cabeço das Fráguas (A Guarda) e Arroyo del Puerco (Cáceres), a língua falada pelos lusitanos mas também pelos galaicos incluindo neles os asturos e provavelmente também os cântabros, tendo como fronteira oriental com os vascons o rio Asón, era uma língua com capacidade para poder ser compreendida e reconstruída a partir das línguas célticas modernas por linguistas e arqueólogos.

O espaço que poderia ocupar haveria que reconstruí-lo a partir, não só pela localização destas inscrições conhecidas, mas também pela onomástica, a toponímia e a teonímia. Corresponder-se-ia com os velhos conventos romanos da Scallabientense, Asturicense, a Bracarense, a Lucense e parte da Emeritense, bem como parte da atual Cantábria.

Essa parte norte-ocidental da península falaria o que os cientístas denominaram com o nome de lusitano ou como diz Ulrich Schmoll (Schmoll 1959) galaico-lusitano por serem a Gallaecia romana e a Lusitânia originária (entendida como o berço do povo lusitano, não da província romana) a sua zona.

As provas que falam da existência deste galaico-lusitano estão nesses achados litográficos de época imperial romana, cuja época ajustamos e deduzimos por estarem escritos com a ortografia latina.
 
 São os exemplos dos textos litográficos os seguintes:

- Texto de Lamas de Moledo

rufinus et tiro scripserunt: veaminicori doenti angom lamatigom crougeai magareaigoi petranioi radom porgom ioveat caeliobrigo

Este texto datado já em época romana (no século I d.C.) com introdução em latim viria significar o seguinte segundo a tradução de André Pena Granha, arqueólogo e historiador galego:

Rufino e Tiro escreveram: Os Veaminicori (cojunto de jovens solteiros em idade militar) dão um anho lamático (de Lamas de Moledo) para o altar de Petranio (o oficiante), um grosso porco para o Júpiter do Castro de Caelio.

Segundo Higino Martins (2008:87) Veamini Cori ou Wegamenoi korioi significaria “os que viajam em carros”, quer dizer, “os chefes”, ou “senhores”.

- Texto da Pedra de Cabeço das Fráguas:

 oilam trebopala indi porcom laebo commaiam iccona loiminna oilam usseam trebarune indi taurom ifadem(...) reve tre(barune)

Texto também de finais do Império com latinismos como porcom (com p- inicial aparentemente não céltico) e redigido na pedra para um ritual de tipo suovetaurília com o fim de proteger a Treba (território político sob a influência do povo que oferece o ritual). A tradução que o professor André Pena Granha fez a finais do século passado apoiando-se noutras línguas célticas vem sendo a seguinte

...uma ovelha para trebopala (protetora da Treba) e um porco para Laebo (divindade feminina), uma égua para a luminosa Iccona (deusa dos cavalos), uma ovelha dum ano para trebarune (a deusa protetora do País) e um touro dum ano para Reva, senhora da Treba.

 A dia de hoje o professor Pena Granha defende que este texto é uma forma de latim baixo-imperial. Uma forma de castrapo celtico-latino.

- Texto de Arroyo del Puerco ou Arroyo de la Luz (Cáceres)

ambatus scripsi carlae praisom secias erba muitie as arimo praeso ndo singeieto ini ava indi veam indi vedagarom teucaecom indi nurim indi udevecom rurseaico ampilva indi loemina indi enu petanim indi arimom sintamom indi teucom sintamo...

isaiccid rueti puppid carlae enetom indi na(.) (...)ce iom.m

Interpretação de Witczak-Wozniak:

“(Eu), Ambatus escrevo: Em Carla, o pacto de amizade ou de reciprocidade por um (parente) que deve ser enviado (ali), que seja contraído (jurado) sem participação de avó e mulheres de irmãos e noivas de filhos e dona da casa (quer dizer, esposa do chefe da família) e sem (participação de) Rursenco Ampilua e servidão, e sem (participação de) Petanim, e (sem) o maior dignatário, e (sem) o filho maior...”

Possíveis interpretações de Blanca María Prosper da linha final que é conhecida como Texto de Arroyo de la Luz III:

“Deste jeito fica dito o que em Carla (está) estabelecido e não (??)...”
“Por aqui fica o que corresponde ao término de Carla...”
“Aqui limita/começa o que está incluído em Carla...”
....................

Ao sul do Tejo dos diferentes povos de filiação céltica segundo os clássicos mas com importante influência tartéssica e fenícia pouco sabemos, mas quiçá não nos sejam de muito interesse por não serem a base, nem as suas línguas, o substrato da futura língua galego-portuguesa.

A língua galaico-lusitana poderia ser identificada como uma língua celta ou proto-celta como nos comenta Armada Pita (1999:260-263) mais ainda nos fornece a ideia de ser a partir do conhecimento das línguas celtas que pode ser possível a tradução dos textos conservados. A compreensão dos mesmos reafirma o parentesco entre esta língua da que estamos a falar com o celta antigo.

A identificação como língua celta é discutida, no entanto, por alguns autores argumentando que algumas palavras possuem um /p/ inicial inexistente neste grupo de línguas, tanto nas atuais como nas antigas.

Mas é o professor valenciano Xaverio Ballester (1998:65-82) da Universidade de Valência quem nos diz:

"O problema na realidade não é a presença linguisticamente incorreta do /p/, mas, dir-se-ia, a posição geograficamente incorreta do lusitano. Se essa mesma documentação que possuímos para o lusitano aparecesse, por exemplo nalguma zona próxima aos Alpes, previsivelmente a linguística indo-europeia tradicional consideraria tal documentação uma testemunha da primeira pola separada da árvore céltica, dessa fase ainda com /p/ que por ser língua indo-europeia, reconstruímos como célticas."

O parentesco com o celta comum parece maior do que se aguardava, portanto.

Diz-nos ainda a professora Fdez-Albalat (1996:39):

"Segundo a minha opinião, estamos perante uma rama celta possivelmente anterior à divisão entre goidels e britons ou bem uma terceira rama de tipo arcaico"

Atendendo para o trabalho de Robert Omnès (1998:247-268) professor da Universidade de Brest, o galego-português tem uns importantes elementos substráticos celtas que determinariam a nossa língua como um “patois” celto-latino. Alguns (e só alguns) desses elementos seriam os seguintes:

1-     Léxico (ver o apêndice n.º 1 da Gramática elemental del gallego común de Carvalho Calero)

2-     Semântica:
  • Preferência pelo verbo ser em vez de ter em frases possessivas do tipo:
O jardim é meu (galego-português)
Y mae gardd gennuf i (galês)
  • Uso da forma levantar (sevel em bretão) com o sentido de “construir”
Levantei uma casa (galego-português)
Sevel eun ti (bretão)
Por exemplo em francês seria construir une maison ou no espanhol construir una casa

3-     Fonética e Fonologia
  • O /k/ implosivo devém num iode ante /t/ explosivo como em irlandês
noctem>noite; octo>oito
  • Em galego-português os ditongos descendentes são os mais numerosos, o que se explica pelo modelo silábico céltico
  • Evolução dos grupos cl-, pl-, fl- iniciais: clamare>chamar; plorare>chorar; flagrare>cheirar
  • A metafonia que Rafael Lapesa (1991:44) identifica como celta:
tenebat>tinha                         Mestr (sg.)/Mistri (pl.): “mestre” em bretão
molinum>moinho                     Bran/Brini: “corvo” em bretão

4-     Morfossintaxe
  • A repartição dos géneros: os nomes das árvores som femininas em galego-português e em bretão
  • O cal, o labor, o nariz, o sal, o mel, o leite, o sangue, o cume... como em bretão (por exemplo em outras línguas latinas como o espanhol são palavras femininas)
  • A mesma forma pode ser utilizada pelo adjectivo qualificativo e o advérbio tanto em bretão como em galego-português
Henned a labour mad (bretão). Traduc: Ele trabalha bem
Tem bem anos (galego-português)
  • O durativo no infinitivo:
Estou a trabalhar (galego-português)
Rydw i’n gweithio (galês)
Emaonn o labourad (bretão)
Taim a(g) dul Traduc: Estou a ir (irlandês)
O galego-português é a única língua romance que partilha esta característica com as línguas célticas
  • Perguntas e respostas: em galego-português as respostas não são “sim” ou “não”. Exemplo em gaélico escocês:
- Rapaz, tens fome?            - Ydy’r bwyd yn barod? Traduc: Está o jantar pronto?
         - Tenho!                              - Ydy! (Está!)
  • etc

Conectando, portanto com a Teoria da Continuidade Paleolítica formulada pelos professores M. Alinei e F. Benozzo, o galaico-lusitano viria ser a língua da qual derivariam as outras línguas célticas e o ocidente da Península Ibérica o seu berço.

Para o professor Higino Martins Estêvez, em entrevista concedida ao Portal Galego da Língua em 13 de Dezembro de 2008 com motivo da apresentação do seu livro As Tribos Calaicas. Proto-História da Galiza à Luz dos Dados Linguísticos, a velha língua céltica da Galiza pôde ter ressistido viva até aproximadamente o ano 1000 momento no que começou o seu declínio real. Também no-lo diz neste seu livro (2008:151) quando falando de Ogrobe onde nos comenta:

OKOBRIXS “Castro da Ponta” pode nascer antes ou trás a conquista (romana), pois a língua céltica subsistiu, sem registos fora da toponímia, em todo o primeiro milénio cristão.

Ainda o nosso professor diz no seu livro quando fala da etimologia do antropónimo Urraca (2008:529):

 b) os montanheses iletrados da cornija cantábrica ainda falavam céltico. Somente ficarom rastos toponímicos (só se escrevia latim); o que não era latim era invisível, mesmos os romances. Da Orracas de reis surge a língua estar viva nos sécs. IX e X
c) O Reino de Leão (sequela da Gallaecia para os cristãos e muçulmanos) era âmbito rude e iletrado. Os montanheses que só falavam céltico –arcaico e próximo do gaélico- nessa língua residual chamavam Esposa por excelência à do rei. Até o século XII só era dado a rainhas por casamento. Então aparecem desse nome duas rainhas per se. Petronila-Orraca é dúbia: ementam a mudança de nome e a seguir o matrimónio com o conde de Barcelona. A castelhana, rainha de 1109 a 1126, a meu ver já demonstraria a opacidade: em céltico chamariam *RIGANI, não *WRAKKA”
d) não se vê diferença entre cântabro e calaico: a voz é compartilhada pela cornija cantábrica (369)

e diz a pé de página:

369 Nem entre calaico e lusitano, cf. Promontorium Artabrum (Plinio IV 113), Cabo da Roca. Norte da foz do Tejo

e continua na página 543:

Os anos 944 e 1097 notam justo o ponto final do sistema linguístico céltico na cornija cantábrica.

Acrescenta na sua entrevista que mesmo em algumas regiões do nosso país, nomeadamente os Ancares pudo ter durado mais quatro ou cinco séculos. A sua conclusão vem dada pola etimologia dum nome de família exclusivo dos Ancares, como é Deiros o qual só pode ser interpretado apartir dum nome céltico testemunhado na Irlanda.

Para reconfigurar e aproximar os limites desta língua galaico-lusitana da qual estamos a falar são de grande ajuda os mapas elaborados pela professora Fdez-Albalat (1990:422-427) e a opinião de Rosa Brañas (1995:211-253) e o próprio Higino Martins, pelo que também, a partir dessa informação, quisemos elaborar um mapa, o número 5, desde a nossa modéstia que poderemos achar no Atlas Histórico da Galiza na página 18.

Roma entra na Kalláikia:


No século II antes de Cristo o imperialismo romano no seu afã de alargar o domínio sobre a península toma contacto com os lusitanos. São momentos de sofrimentos e guerras nos que os povos do norte do Douro participam como se com eles fosse, razão que nos faz pensar na unidade étnica galaico-lusitana que Roma quebrou por razões políticas para o seu projeto imperial.

Decimus Junius Brutus, entre o 139 e o 137 a.C. passa-se para a ribeira direita do Douro após uma feroz batalha, como nos conta Casimiro Torres, na que morrem segundo fontes romanas mais de 60.000 soldados galaicos, fazendo que o rio se tinja de vermelho.

São os habitantes da foz do Douro, os Kaláikoi, os que lutam contra os romanos e os que a partir de agora vam dar o nome a todo o país ao norte do rio que eles chamam “Dwórios” ou “das Portas” ou “das Portelas” segundo nos traduz o linguista e celtista galego-argentino Higino Martins Esteves (2008:17).

Brutus chega até o Minho (rio “do Tesouro” ou “da Riqueza”), segundo Martins Esteves (2008:337) levando a guerra aos povos marinheiros do atual norte de Portugal, mas é sobre a sexta década do século I a.C. quando Caesar, Julius Caesar, chega por mar desde a Gália à costa galaica até Brigântia tentando submeter de forma definitiva os Kalláikoi.

Isto não vai ser fácil nem possível até que o seu sucessor Augusto desenvolva as guerras cântabras e acabe, embora não definitivamente, com o problema que lhe ocasionavam os povos do norte da península.

É no 22 d.C. segundo o professor Pedro López Barja, num trabalho feito num livro coordenado por Sanchez Palencia e Julio Mangas (2000:36) quando no monte Medúlio os galegos após intenso assédio morrem envenenados pela sua própria acção de ingerirem seiva do teixo antes de se deixarem capturar pola escravatura que Roma lhes tinha reservada.

No desenvolvimento dessas guerras chamadas Cântabras as últimas batalhas pela conquista do território do Noroeste têm lugar nas montanhas mais afastadas e mais inacessíveis. Ao tempo que se produz o desastre do Medúlio, e quase paralelamente, os astures são também vencidos pelo Império no Mons Víndius situado no cordal Cantâbrico fazendo com que finalmente a totalidade da península se passe ao domínio romano constituindo uma nova província dirigida diretamente pelo imperador Augusto com o nome de “Transduriana”, como nos diz o autor acima citado, Pedro López Barja. Esta província integrava os novos territórios conquistados e habitados por cântabros, astures, lucenses e bracarenses. Segundo ele, essa província duraria desde o 22 a.C. aproximadamente até o 13 a.C. momento no que desapareceria integrada provavelmente dentro da Lusitânia (2000:31-45).



Bibliografia:

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NOTA: A FIGURA DO GUERREIRO GALAICO QUE APARECE NESTE ARTIGO É DA AUTORIA DE CARLOS ALFONSO FEITA COM MOTIVO DA ASSESSORIA QUE O PROFESSOR ANDRÉ PENA GRANHA FEZ NA GRAVAÇÃO DO FILME "GALLAICUS".

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