segunda-feira, 28 de abril de 2014

Desabafo




Por Paulo Soriano (São Salvador de Baia-Brasil)

Que viva a Espanha, sim. Mas que nos deixe viver em paz, também.

A maligna influência do Reino perpassa Portugal e chega ao Brasil como se fôssemos puros clientes de uma cultura superior. Séculos e séculos de desinformação mui bem pensada e articulada com vistas à destruição de nossa cultura.
Olavo Bilac (1865-1918) , o maior dos parnasianos brasileiros, publicou, em 1888 – o mesmo ano da abolição da escravatura e o anterior ao da proclamação da República –, um dos mais famosos poemas escritos no Brasil: “Língua portuguesa”.
Olavo Bilac (1865-1918
É bem possível que muitíssimos galegos o ignorem.  Por isso, reproduzo-o na íntegra:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Aqui, detenho-me apenas na primeira estrofe, Última flor do Lácio, inculta e bela, que em si concentra a essência do soneto.
Talvez eu vá um pouco além, mas não muito.
Apesar do nobre intento – o de louvar, com rigor formal e apuro estético, a língua em que escreve e fala –, o autor, o esmerado Bilac, não conseguiu superar a erronia e a ambiguidade.
Sim, ambiguidade.
Flor inculta
Comecemos, pois, por ela: não se sabe, exatamente, o que quer dizer o vate com “inculta”.
De fato, por inculto podemos entender aquilo que, apesar de todas as suas potencialidades, não foi cultivado.
Ou, noutro sentido, aquilo que, desgarrado da cultura que lhe deu origem – seria o Lácio? – padece de imperfeições culturais que o torna diminuto ante a própria gênese, ou aos seus pares, porque estes estão mais próximos e mais afeiçoados à cultura da qual provieram. O termo “rude”, empregado numas das estrofes mais abaixo, reforça a percepção de que era esta a intenção do autor.

Contudo, não sei... Pode ser um ou outro. Ou, um e outro, o que é menos provável, dada a natureza formal da escola à qual se filiava Bilac. Como bom parnasiano, Bilac não se lançaria a certas aventuras coetâneas, simbolistas, como as ambiguidades puramente surpreendentes e sibirlamente intencionais.
E vamos à erronia.
Como se pode reputar inculta – no primeiro dos sentidos, o mais improvável, de que cuidamos –, a língua que produziu um dos maiores gênios do Renascimento – e ele consta do próprio do poema de Bilac – que nada deve a Dante ou Shakespeare? Como se pode reputar inculta esta terra úmida, arejada, de cujo útero provieram escritores admiráveis – já ao tempo de Bilac –, como Camilo, Castilho, Alencar, Azevedo, Machado, Herculano e Eça?
E, indago, como pode ser inculta – na segunda das acepções –, uma língua que, já nos séculos XIII e XIV, adornada por melodias de incrível beleza, hoje em parte reconstituídas, perpassava e grassava, com sua graça, corações e almas de não apenas de andarilhos menestréis, em mulas montados, mas – coisa inusitada e irrepetível em quaisquer das eras – de nobres e soberanos poderosos, agora convolados em músicos e poetas inspirados, a exemplo de D. Diniz de Portugal e do estrangeiro D. Afonso de Castela? E vejam que D. Afonso, renunciando à língua que ajudou, com grande esforço, a construir, não compunha e escrevia senão em português. Enquanto o castelão engatinhava, o português – ou o galego, como queiram – já era uma língua culta, assentada em boa escrita e belíssima literatura. Somente italiano e o provençal – hoje agônico, este último – poderiam, dentre as línguas neolatinas, ombrear-se então ao português, desde já antigo, bem escrito e belo. Um esplendor naquelas épocas medievas. Um esplendor ainda hoje – quem o nega? – e um esplendor nas épocas de alhures e algures.

E não é o português, como pretende Bilac, a última flor do Lácio.
É, sim, o português esplendor, mas não sepultura.
O túmulo a outros pertence.
Na visão de Bilac, o português desgarrou-se doutro romanço – que não pode ser outro que não o galego – e se constituiu em língua própria: o último rebento – o caçula, o benjamim – do latim.
Creio que o que sucedeu foi bem o inverso: o velho e culto galego manteve-se em Portugal, tal e qual quando este ainda era mero condado da Galiza, e, conservando-lhe a estrutura e ingênita poesia, livre de toda nefasta – primeiro próxima; depois poderosa e ao final iminente – injunção castelhana, galgou amplos horizontes. Mas, em contraponto, a Galiza, a pátria mãe, a gênese magnífica de todos nós, não logrou a mesma sorte. Todos o sabemos.

Nada há de mais legitimamente galego do que se fala – e sempre se falou – ao sul e para além do Minho. Sempre foi galego e sempre o será. Se o galego, fadado à extinção nos próprios lindes, se expandiu, adornou-se de novas cores e de ritmos, se se deixou penetrar polos ventos cálidos dos árabes, ameríndios, africanos ou asiáticos, cumpriu apenas o seu fado, o seu desiderato. Levou-se pelo hálito inexorável do tempo e do destino. Mas a si próprio não renunciou, e, por isso, conservou-se em si mesmo, malgrado em terras alhures, bem alhures, que não a própria, tão condoída de hostes castelãs. Hoje, todo brasileiro, ainda que não o saiba, fala galego. Mas nem todo galego, quando não está a falar o habitual castelão, ainda que pense estar a falar a língua de sua pátria, porque convicto de que aprendeu corretamente o galego na escola – e não , como seria natural, com sua mãe, ou a mãe de sua mãe–, não o fala. Paradoxo? Quem sabe se não?
Em e-correio dirigido ao mestre Estraviz, escrevi, com muita convicção: “Eufalo galego com toda honra que o galego me permite, e escrevo na língua galega com todo ardor.” Bilac também o fazia – infinitamente melhor que eu – e o demonstrou em seu pulcro soneto, embora não se desse conta de que falasse galego. Sim. Assim como Machado, Bilac falava galego. Mas não somos a última flor do Lácio, nem somos incultos. Quanto à beleza... O próprio poema de Bilac – sim, o lindo poema de Bilac – já o responde.

A língua portuguesa é, sim, esplendor, porque em si mesma dor e esplendor. Mas não último rebento. E, jamais, sepultura. Não fomos nós que, incultos, impusemos uma pá de cal no latim. Este mérito, ou demérito, a nós, que a falamos – seja em Valença do Minho, Tui, Maputo, Dili, Benguela, São Tomé, ou Itabuna – não nos pertence. Quiçá a outros, realmente incultos, em ambos os sentidos, acuda a pecha .... Quiçá...
Talvez a Galiza se faça sepultura da própria língua – a língua de Dom Dinis, Camões, Rosália, Castelão , Machado e Herculano – que meigamente criou. Que construa em si mesma, e de si mesma erija o próprio túmulo, cravado de inscrições espanholas, à guisa de um arrogante epitáfio de puro desdém.
Cabe aos galegos a escolha.

Se os galegos optarem por destruir o que há de maior de si mesmos, o que fazer?
O conforto está alhures. Se Deus me deu a magnífica honra de falar galego, e ensiná-lo aos meus filhos, tal é uma atitude divina. Se o galego não cabe na Galiza, expande-se maravilhosamente. Queira ou não queira o Reino de Espanha.


3 comentários:

Fontan disse...

Son filho de galegos neto de portugueses e bisneto dun brasilenho. Respeto muito a sua opinión. Pero hei de comentarlhe. Que tal vez o espanhol tenha mais influencia do galego, da que muitos estudiosos pensan. O galaico xa vai mui velhinho, e a noso pesar xa esta escindido do portugués. Pero enchenos de ledicia que un filho noso medre e medre. Unha galinha empola os pitinhos, pero nem todolos pitinhos cobren a galinha.

José Manuel Barbosa disse...

Velhinho? Ao nosso pesar? Cindido do português? Sei-que vai haver funeral em pouco tempo? Assim não se pode pensar. Resignar-se à morte não é saudável em nenhum povo.

Anónimo disse...

Filho???
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