Por Marcos de Rio
«Kuklowa kantikas senas totegontiias brusnos ammosteras. Woida sketla ankluta, extos ne woida bretras. Gabi tritian krottan etik swene nawan ak wikanti strengus ad kradion, kradios anskatikos exsobnus, ak gabi wiria noxta: Tiros etik Riiotuts!»
É
um texto em céltico galaico. Ou «castrexo», se assim preferis
denominá-lo os isolacionistas, também em termos de história, que
adorais os blaveros no Nòs (com acento gráfico incorreto) do estilo
do Manuel Veiga Taboada, que publicou um artigo lá em 20/X/2020 titulado "O Desenfoque Reintegracionista"
Para focarmos o tema, observemos várias cousas:
1. O texto inicial está escrito numa língua «de seu», uma «língua própria» da atual Galiza, exclusiva e identitária, que podemos usar como bandeira, como elemento diferenciador e aglutinador da nação galega, conformando um elemento essencial dum ideário nacionalista galego.
2. O texto está escrito num sistema ortográfico e gramatical coerente e funcional, sem qualquer dos problemas que tem um sistema ortográfico importado do castelhano como é a atual ortografia da RAG, onde «guerra» se escreve com U apesar de não existirem «ge» e «gi» que se grafam «xe» e «xi». É, aliás, um sistema que permite usar as letras latinas do meu teclado, sem necessidade dum alfabeto ogâmico.
3. O texto é lindíssimo, e possui o génio galaico que nos define e identifica, que Pondal imortalizou no poema que hoje é hino galego, pois como diria Steiner, “os idiomas codificam imemoriais reflexos e giros de sentimento, relembranças de atos que transcendem a lembrança individual...". Sentimento, história, etnia, cultura, poesia, paisagem, música, terra.... tudo está presente neste texto, que amais possui a épica heroica dum nacionalismo romântico que pretende emancipar e libertar sua nação em vez de chorar eternamente derrotas passadas, presentes e futuras.
4. O céltico galaico pode-se recuperar para sua função político-emocional ao serviço do nacionalismo, tal como os bascos recuperaram o euskera, os judaicos o hebreu, os escoceses o gaélico, etc. Pode ser ensinado, pode ser objeto dum Plano de Normalização Linguística, pode ser considerada língua regional minoritária e menorizada, milhares de chupópteros podem viver dela, e milhares de afeiçoados podem escrever os seus disparates nela.
Não obstante, aposto a que quase ninguém é capaz de compreender a mensagem que o emissor (escritor do texto) pretende transmitir ao recetor (leitor do texto) carecendo assim da FUNÇÃO ESSENCIAL DE QUALQUER LÍNGUA, que não é outra do que a COMUNICAÇÃO. Sentimentos enxebres e afetivos, carácter identitário, elemento nacionalista, etnicidade, cultura, beleza das regras linguísticas, etc, ficam em segundo plano, totalmente desfocados quando a língua não é capaz de transmitir a mensagem que se quer comunicar.
Não obstante, se eu escrevo...
«Ouvi canções antigas que vêm do seio do tempo. Sei histórias nunca ouvidas, mas não sei as palavras. Toma a terceira harpa e tange as 29 cordas ao coração, coração valente sem sombras nem medo, e toma a verdade nua: Terra e Liberdade!»
...a mensagem do início é compreendida por um número muito amplo de pessoas, é transmitida corretamente, e a língua adquire essa FUNÇÃO ESSENCIAL DE QUALQUER LÍNGUA que é a comunicação. O galego-português permite ainda ter todas essas funções afetivas e políticas da língua, mas sem perder a função essencial.
O céltico antigo pode ser língua litúrgica e ritual, tal como o castelhanismo pretende fazer com o “galenhol” num sistema de «bilinguismo harmónico» onde “galenhol” só têm algumas funções (na casa e na literatura) e para os outros usos está o castelhano. Esse mesmo problema teria o céltico antigo num uso contemporâneo, pois não possui palavras para definir as partes dum motor diesel, que não existia na altura e haveria que tomar empréstimos, tal como faz o “galenhol”, em cujos manuais se ensinam as partes do carro de vacas, mas não dos carros que fabrica a Citröen, para cujos nomes se opta por castelhanismos alheios às normas internas da língua em vez de tomá-los de Portugal ou Brasil, onde se seguem estritamente.
O céltico antigo é uma língua morta, não uma língua funcional. Pode servir como língua litúrgica de colgalho num formulário oficial, para que no 17 de maio escreva nela La Vox de Galicia sua capa, para que qualquer escritor escreva um poema, mas não serve para o dia a dia. Nela não podes escrever um informe médico, nem uma sentença dum tribunal, nem um manual de informática, nem um ensaio sobre economia.
Esse é o problema do “galenhol”, uma focagem como língua incompleta e parcial que precisa ser complementada polo castelhano segundo o uso. Esse é o drama da nossa língua, e a causa que nos levou em apenas 50 anos a passarmos de 80% de monolingues em galego a apenas 5% de crianças monolingues em “galenhol”, aliás fortemente hibridado com o castelhano.
Negar ou desprezar a FUNCIONALIDADE COMUNICATIVA da língua, focando a atenção em valores secundários da mesma é o grande erro do autoanemismo “galenhol” e o grande acerto do extermínio linguístico do nacionalismo espanhol.
O REINTEGRACIONISMO não se importa polo número de falantes, senão polo carácter FUNCIONAL da língua como ferramenta de comunicação em todos os âmbitos, para o qual deve ser uma LÍNGUA PLENA, para o qual precisa do seguinte:
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Ter oralidade diversa e escrita unificada e coerente para representar todas as falas.
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Ter diversos registos (vulgar, coloquial, culto, técnico, literário) para poder ser usada em todos os âmbitos.
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Ter léxico especializado (jurídico, médico, eletrónico, botânico, químico, informático, político, jornalístico, …).
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Ter uma comunidade o mais ampla possível onde flua a comunicação.
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Ter dinamismo, com criação literária oral e escrita, e constante evolução.
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Ter suporte para poder desenvolver a vida quotidiana integramente nela.
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Ter arraigo social, produto da história e tradição.
Tudo isso é o que oferece o reintegracionismo, uma língua viva e útil. Uma língua morta como um cadáver em formol para ser exibida como bandeira num tanatório espanhol é o que oferece o isolacionismo.
A diferença entre termos um galego isolacionista e um galego reintegrado, ortograficamente está em mudarmos quatro miseráveis letras. Não obstante, desde um ponto de vista concetual e sociolinguístico, a diferença é abismal: língua inútil vs. língua útil, língua sem prestígio vs. língua com prestígio, língua para a política vs. língua para a comunicação, língua excludente vs língua inclusiva. A diferença concetual é fulcral para ganhar a batalha como língua social perante a pressão do castelhano. E disso depende ganharmos utentes neofalantes e neoescreventes nesse 95% de castelhanofalantes nativos que vêm de caminho.
PS: A língua galega está longe de morrer, pois conserva-se plena e vigorosa em Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, etc. Não obstante, estão perto de morrerem os galegos que a falam na Galiza. Isto é, morrem os utentes, não a língua.
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Mapa da língua apresentado no livros de texto galegos, antes da chegada do PP ao governo autonómico em 1981 |