Por
Paulo Soriano
Há
um conto que começa assim:
Eu
tenho um animal curioso: metade gatinho, metade cordeiro. É parte da
herança de meu pai. Em meu poder, ele se desenvolveu completamente.
Antes, era mais cordeiro do que gato. Agora é meio a meio. Ele tem
do gato a cabeça e as garras; do cordeiro, o tamanho e a forma. E,
de ambos, os olhos, mas agitados e selvagens, assim como os pelos,
macios e rentes ao corpo. Os seus movimentos são saltitantes e
sorrateiros. Ao sol, no peitoril da janela, enovela-se e ronrona. No
campo, corre como um louco e ninguém o alcança. Ele foge dos gatos
e procura atacar os cordeiros. Nas noites de luar, apraz-lhe passear
sobre as canaletas dos telhados. Não sabe miar e abomina os ratos.
Ele passa longas horas espreitando o galinheiro, mas jamais
aproveitou uma oportunidade para matar...
O
conto foi escrito, em 1917, pelo escritor morávio, de expressão
alemã, Franz Kafka. Nele, o brilhante contista retrata a angustiante
condição de quem padece do hibridismo, mescla que leva à absurda
situação em que qualquer tentativa de identidade é impossível e,
ao final — veremos — imensamente destrutiva. Mas, não nos
antecipemos. Juntos, voltaremos ao conto de Kafka mais tarde.
Soube por meio de meu amigo José Manuel Barbosa, de uma entrevista ao sociolinguista espanhol Henrique Monteagudo — que é
profesor
de Filoloxía Galega na Universidade de Santiago de Compostela e Secretário da Real Academia Galega —
publicada no sítio Quilombo Noroeste. Leia
aqui. Cá, falo algo
sobre
o que, como brasileiro e lusófono, penso acerca do que disse o
súdito de sua Majestade.
Não
hei de resumir a entrevista concedida pelo escudeiro de El-Rei. O
leitor pode lê-la na íntegra no sítio acima indicado. Digo,
apenas, que o senhor espanhol parece muito pouco fiel à sua língua
de nascença (sim, o senhor Monteagudo nasceu não em Madri ou em
Sória, mas na Galiza!), quando, tomando por castiços, emprega
termos canhestros como a
respecto
ou por
suposto,
utiliza uma conjugação verbal de causar arrepios (aínda
que parece
estar),
troca — e sem trocadilhos, leitor! — “trocar” por “cambiar”
(as
cousas cambien),
e ainda se digna a debuxar (o filólogo conhece com certeza o verbo
desenhar,
mas, como bom feudatário espanhol, prefere o galicismo tão comum e caro
ao seu suserano franco-castelão) os caminhos nos quais o galego deve
seguir doravante...
A
um valete assim tão fiel, a um funcionário tão sensível, seria possível
imaginar o galego como uma língua internacional? Já lhe não basta
e sacia um galego que, para a alegria de Castela, não é carne e nem
é peixe? Nem
gato, nem
cordeiro, mas, ao mesmo tempo — e tragicamente — gato e
cordeiro?
A quem interessa o insulamento da Galiza? A quem interessa um galego
castrapo? A quem interessa a normativa castelã, que tanto estorva e
empeça a comunicação escrita da Galiza com as demais nações
lusófonas?
O
real acadêmico assegura que, falando galego em suas palestras a
ouvintes brasileiros, a
intercomprensión mutua é moi doada e esixe pouco esforzo.
Concordo com ele. E vou além. Digo, por experiência própria, e bem
fecunda, que o mesmo acontece quando um brasileiro palestra na Galiza
(de Oeste a Leste da Galiza, e vice-versa, em verdade). Mas ele
alega que a
comprensión espontánea do discurso en galego tamén me ten
acontecido ante públicos hispanófonos.
E por que não? Por que seria diferente, se a fala vem de um filólogo
que se esmera em escrever galego na ortografia espanhola; substitui,
e sem necessidade, os termos castiços por vocábulos e expressões
profundamente castelãos; viola — e rudemente — do galego
elementares vozes de conjugação verbal?
A
reação do sociolinguista espanhol ao reintegracionismo era-me bem
esperada. Nada a dizer. Não vou malhar em ferro frio. Neste
sentido, devolvo — e bem devolvido, já que não sou espanhol, mas
brasileiro — a ele, coa mesma moeda, o sexo
dos anxos.
Quanto
a nós, brasileiros, estamos bem (e muito
bem,
obrigado!) na companhia de Alexandre Herculano, Camilo Castelo
Branco, Castilho, Fernando Pessoa, António Vieira, Florbela Espanca,
Gil Vicente, José Eduardo Agualusa, Bocage, Antero de Quental,
Miguel Torga, Mia Couto, Eça de Queiroz, Sophia de Mello Breyner
Andresen, Herberto Hélder, Almada Negreiros, Almeida Garret,
Sá-Carneiro, Camões...
Não,
amigos, os brasileiros não precisamos de secessão
alguma. Nem de norma brasileira autônoma qualquer, o primeiro e
decisivo passo àquela ruptura indesejada. Amamos a nossa língua
como ela é, com todas as suas variedades, cores, sabores e
gradações. E ela é a língua portuguesa. Esteja ela onde
estiver, mesmo que — e talvez por melhor motivo — acima do
Minho, nós a amamos.
Ela,
e somente
ela, é a nossa Soberana.
Mas,
será que não concordo em nada com Monteagudo? Concordo sim! Já o
esbocei um pouquinho lá em cima. E, um bocadinho mais abaixo, devo
concordar plenamente com que o que disse o sociolinguista espanhol:
Polo
camiño que imos, o galego corre un serio risco de retroceso
catastrófico e irreversible.
Com
certeza! O camiño
que
ele apregoa, aqui no Brasil e alhures, não leva senão a uma triste
e autodestrutiva conclusão. Ele — este tenebroso sendeiro, este
caliginoso caminho
— não é nada menos que aquele que nos diz o desfecho do conto de
Franz Kafka:
...Acredito
seriamente nisto. Ele tem em si tanto a inquietude do gato quanto a
do cordeiro, embora estas sejam diferentes. Por isso, ele sente-se
tão incomodado na própria pele. Às vezes, ele salta à cadeira de
balanço, apoia as patas dianteiras em meu ombro, e toca-me o ouvido
com o focinho. É como se falasse comigo. De fato, ele vira a cabeça
para mim e me olha, observando o efeito que a sua comunicação
produziu em mim. Para comprazê-lo, ajo como se o compreendesse,
balançando a cabeça. Então, ele salta ao chão para brincar.
Talvez
a faca do açougueiro seja um alívio para esse animal, mas ele é
uma herança de família e, por isso, eu tenho que lhe negar o favor.
Por isso, ele deve esperar até que deixe de respirar por si próprio,
malgrado às vezes ele me olhe com os olhos da razão humana,
exigindo de mim uma atitude razoável.
Sim...
Uma atitude razoável...
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