sexta-feira, 8 de junho de 2012

Entrevista a um xamã galaico: Lobo de Lug (Primeira Parte)

Entrevista realizada por David Outeiro:

1 – Porquê é que decides partilhar a tua experiência? Porquê apresentar-se com um pseudónimo?
R – Serei bem directo: - Porque tu me pediste e, sendo assim, é porque é tempo de o fazer, não é verdade? O ser Lobo de Lug, é o que sou, simplesmente, sem qualquer questão de pseudónimo. O Lobo de Lug é quem te fala, respondendo às tuas perguntas.
2 – Como é que foi o desenvolvimento das tuas capacidades e com anos? Tiveste algum mestre ou mestra na tua iniciação?
R – Durante toda a minha vida, em nada tive outra mestra que a própria vida. Desde que me conheço, e conheço-me há muito tempo, aprendi a aprender sozinho, ouvindo tudo e vendo atentamente o que me rodeava, e esta “qualidade” esteve a ponto de me custar a vida ao atravessar, sem me dar conta que o fazia, uma rua de Lisboa, a que mais propriamente devia chamar de avenida. Este facto, divertido, aconteceu por não estar “neste mundo” nesse momento. Mais engraçado é que o condutor do carro era um grande amigo que da janela me gritou: - Quase te mandava para esse mundo em que vais a pensar, maluco!
Aos cinco anos, após a morte do meu Pai, o meu médico recomendou à minha Mãe que me levasse para fora do Porto, para eu não estar no ambiente que se respirava lá por casa, dado eu ter uma sensibilidade muito grande a tudo quanto me rodeava. Assim fomos para uma quinta de umas tias, que eu adorava, no Ribatejo, mais propriamente em são João da Ribeira. Era um casarão velho escuro, cujos corredores eu percorria durante a noite, nos meus ataques de sonambulismo. Poucos dias após a chegada, caí doente e o médico de Santarém que foi chamado para me ver, disse não perceber o porquê da minha febre e conversou com os familiares, dizendo que não havia mais nada a fazer senão esperar. Como mais tarde me contou a minha criada Clementina, a que nos criou a todos e estava particularmente ligada a mim, eu falava que estava ali no quarto o meu Pai e uma Senhora vestida de branco. Dizia-lhe que tivesse cuidado ao andar pela habitação para não embarrar neles. Decidiram então que a Senhora era a Virgem de Fátima, muito em “moda” naquela época, 1950, e foi um carro buscar um garrafão de água bendita à Cova de Iria. Com essa água, a Clementina deu-me um banho e, a partir desse momento, comecei a arribar e fiquei bom. Logo foram feitas promessas, rezadas missas, benzeduras pelo cura da terra. 
Mas a Clementina sempre me disse que quem me tinha curado tinha sido a Senhora da Fonte, e que eu devia, um dia, ir à fonte agradecer-lhe. Fi-lo muitos anos depois.Antes desta época, durante ela e até aos 11 ou 12 anos, passava a vida a ver “coisas” que não me pareciam estranhas mas, quando as contava à minha Mãe eram transformadas em sonhos, coisa que eu não entendia, pois estava bem acordado quando as via.
Aos 10 anos fomos viver para uma quinta, na Chamorra, perto de Canelas e aí havia uma quantidade de crenças em bruxas, curandeiras e videntes, sendo a Sra. Maria, Mãe da caseira, uma das ditas cujas, mas a meu ver mais curandeira. Chamava-me o seu Menino de Luz, ou Luzeirinho. Quase todos os dias dava-me para beber água de uma bilha, não me deixava beber da torneira, fazendo o mesmo ao neto, o meu grande amigo Manel. Eu já sabia que as estrelas não tinham luz fixa, e os planetas sim. Então, nas noites de Verão, com o céu bem estrelado e o piar arrepiante, para todos das corujas, eu juntava o Manel, o António, a Fernanda, a Marinha e o meu irmão Zé Pedro, e íamos para o campo fazer rir as estrelas…A coisa consistia em eu apontar as estrelas, fazer uma reza que já não recordo mas inventada para a ocasião e apontava para o firmamento. Eles seguiam a direcção do meu dedo e viam a estrela a cintilar, ou seja, a rir-se. Era muito respeitado por isso. Ahahahahaha! A Sra. Maria dizia que os outros não podiam apontar as estrelas, quando nos reunia-mos ao lume a ouvir as suas história, pois se o fizessem ficariam com as mão cheias de cravos. Só eu o podia fazer saindo incólume do acto. Isso aumentava a admiração que me tinham. Falo com saudade desses tempos de felicidade.
Um dia, andando com o Manel às pinhas, ouvimos um estranho trovão, num dia de Sol. Ficámos aterrados e corremos para casa que ainda ficava longe, pela viela por onde, nas noites de luar, passava a Porca dos Sete Porquinhos, assim se chamava o caminho. Chegados, perguntámos se tinham ouvido o trovão e ninguém tinha dado conta de tal. Fomos contar à Avó Maria e ela disse que não devíamos ir para o pinhal sós pois ali andava o Dianho e o estrondo era ele a falar.
Comecei então , numa leira, a construir uma lura grande, onde eu cabia, mas a terra de cima estava sempre a aluir. Então o Manel arranjou uma tábua grande, roubou-a ao Pai o Augusto caseiro, o que lhe valeu uma bofetadas, e colocámo-la por cima do buraco. Depois de acabada a escavação e devidamente alargada, para entrarmos os dois, tapámos a parte de cima com terra. Aquele buraco foi o meu lugar de refúgio durante muito tempo. O sítio onde de escondia, adormecia, sonhava e me sentia perfeitamente bem. Mais tarde, a filha de uma amiga inglesa da minha Mãe disse-me com a maior das naturalidades que eu tinha aberto uma porta para as Fadas.
A Clementina e a Sra. Maria, decidiram levar-me à Bruxa de canelas, que era muito conceituada, para que ela visse o Luzeirinho… e ali soube, sem perceber nada, que tinha o corpo aberto. Adorava lá ir. Apareciam umas mulheres que me punham a mão na cabeça, falavam muito umas com as outras e, maravilha, cobriam-me de doces e refresco de limão com mel. A condição para que estas visitas se pudessem prolongar, era o mais completo segredo, sobretudo no que dizia respeito à minha Mãe.
Deixo isto para fazerem uma pequena ideia de como fui crescendo…
3 – Podias falar um bocado sobre a tua experiência com os xamãs San durante a guerra?
R - E cresci tanto, que acabaram por me meter numa guerra, estúpida, como todas as guerras, tendo partido para Angola.
Eu, a partir dos dezassete anos, comecei a dar-me com um grande homem, o Jorge Dias, antropólogo a quem tanto se deve, e aos seus amigos, os irmãos Veiga de Oliveira, que andavam pelo país a fazer recolhas por conta própria.
Assim cheguei a África com alguns conhecimentos e muitas ganas de conhecer novas civilizações, tribos, costumes e, como me haviam ensinado, com muito respeito por tudo quanto visse e ouvisse.
Para abreviar, três anos são um livro, digo eu, comecei a fazer patrulhamentos na região dos Muílas e dos Mucancalas, povos que maravilharam o rapazote de vinte anos que eu era. Os livros, as conversas, as aventuras, estavam abertas diante dos meus olhos. Por essa altura, a PIDE começou a interessar-se por mim, infelizmente, pois todos os apontamentos que vinham na minha mala de porão, no regresso, desapareceram do navio sem deixar rasto. Nunca me fizeram outro mal, mas esse foi revoltante.
Mas o que queres saber, aconteceu mais tarde, no norte de Angola, numa povoação de nome Quiquiemba, para onde fui destacado com o meu pelotão.
Apreendi que havia outras coisas na vida, para lá do que me tinha ensinado a sociedade “civilizada” que eu habitara.
Estava de conversa com um século, um velho, durante a pesagem do café da sanzala. E dizia-lhe eu:
- Século, porque não cultivas o café como os brancos, com sombra?
- Para quê?
- Ora, para teres mais café.
- Para quê?
- Para ganhares mais dinheiro.
- Para quê?
Foi como uma paulada na cabeça. Que besta eu era. Que vida tinha vivido? Para que me serviam tanto estudo, tanta filosofia, tanta merda? Em menos de um minuto tinha-se aberto outro universo diante de mim.
Fomos grandes amigos, o século e eu, até à sua morte, dois meses depois. Decidi fazer-lhe um enterro digno do grande homem que era. Coloquei o caixão feito de ramos de palmeira, onde meteram o corpo envolvido num cobertor, em cima de uma viatura do exército e conduzi-o para a cemitério. Foi feito o enterramento em silêncio, o que me surpreendeu, pois sempre acompanham os mortos com danças e batuques. Sobre a campa deixei-lhe uma garrafa de White Horse, dizia que bebida de branco iambote, era boa, e os familiares deixaram as suas oferendas. Passados dois dias, apareceram em minha casa uns velhos para falar comigo, muito excitados. Disseram-me que o século andava na aldeia e assustava toda a gente. Não entendi, mas acabei por perceber que tinha cometido um grande erro. Ao levá-lo de carro, a alma tinha ficado para trás. Foi assim que o desenterrámos, voltámos a trazer para casa e depois, no dia seguinte fizemo-lo regressar ao descanso, desta vez numa marcha dançada ao som do batuque, das lamúrias das carpideiras e dos cantares das mulheres. Descansava em paz e eu aprendera a respeitar as tradições dos outros.
Na semana seguinte fui convidado pelos velhos para uma cerimónia. De principio tive medo e pensei levar dois soldados armados comigo, mas depois achei que estava a ser mais uma vez ridículo. Fomos para baixo de uma palhota sem paredes laterais, afastada da povoação. Dois troncos de árvore, paralelos, ladeavam uma fogueira sem chama, que deitava um cheiro desagradável e sufocante. Ali nos sentamos, eles falando uma língua incompreensível, eu só sabia meia dúzia de palavras da sua língua, e eu protestando com o fumo, mudando de lugar sempre que a fumarada vinha para mim, o que lhes provocava muitos risos. Comemos peixe seco com fuba e bebemos bastante marufo, seiva de palmeira pura. Comecei a ficar tonto, mas estranhamente lúcido, com uma visão de pormenor espantosa e com um ouvido que captava muitos mais sons que aqueles que eu ouvia usualmente. A minha cara deu origem a uma conversa surda entre os velhos e ouvi falarem em Nzambi, ou Zambi, que é deus, o deus deles evidentemente, pois não estavam, felizmente cristianizados. Deram-me a fumar um cachimbo cheio de tabaco misturado com maconha, erva, e pouco a pouco entrei num mundo que posso considerar divino.
Entrei em contacto com Yami, que na língua dos Yorubas significa minha Mãe, e segui as suas instruções.  Quando um homem entra em contacto com a Terra, depois de ter pedido permissão a Onilé, pode ser possuído por todo o universo e explicaram-me que eu podia ser como o vento forte ou como uma briza boa. Se fosse o vento forte teria uma energia destruidora e faria coisas más, tendo de ser julgado pelas Yami que estão debaixo do poder de Oso que é um grande feiticeiro marido de todas as grandes mães. Vi os espíritos das florestas, dos animais que foram homens, do javali que tem o poder de tirar aos homens o que eles gostam mas que, se arrepende e oferece como alimento, vi muita destruição feita pelos seres demoníacos e mergulhei, por fim, num grande espaço de luz. Nada mais te posso dizer a não ser que acordei com o médico do exército ao lado na enfermaria do quartel, para onde me tinham levado. Estava super feliz e apanhei um castigo. Evidentemente.
A guerra deixou de ser o que era, a partir dali. Praticamente, deram-me como afectado mentalmente. Que maravilha.
 4 – Qual a tua religião? És cristão ou praticas a velha religião celta? Em que deuses acreditas?
R - Não tenho que ter uma religião. Não sou cristão porque considerei ter sido baptizado sem ter noção do que me estavam a fazer e fiz a negação do catolicismo diante de um cura, na igreja. Não sou mais filho de deus, mas pertenço a todos os deuses. Pertenço à energia cosmocêntrica, antropocêntrica e teocêntrica.  Sou um animista e, portanto, acredito na anima como princípio vital. E, por isso mesmo, sinto-me muito ligado aos princípios religiosos dos celtas, mas não só. Estou muito ligado ao pensamento de Lao Tsé, mas não abdico totalmente do confucionismo. Respondi?
5 – Que as crenças celtas chegassem até hoje pode parecer muito forte. Há gente que pode pensar que isto tem a ver com o movimento “New Age” ou o “Neodruidismo”, o reconstrucionismo..., mas acho que este não é o caso. Que achas sobre o Neodruidismo?
R – Se estivessem aqui uns amigos das artes já estariam a rir-se por causa do Neo. Eu não gosto mesmo nada de neos. Ahahahahaha
Eles são animistas, é verdade, e estão em sintonia com a minha maneira de pensar, com sabes, no que diz respeito ao acreditar na sacralidade da Natureza e no politeísmo. Mas eu não gosto de grupos e a situação destes se denominarem dos Bosques, das Clareiras, dos Ramos, dos Carvalhos, dos Castros, não vai comigo. Sou de opinião que as pessoas se devem juntar naturalmente, vestidos como lhes apetece, sem mascaras e imitando os de outras épocas, e falarem do que pensam e das suas crenças. Nem mesmo no meu campo da pintura pertenço a qualquer grupo. Claro que sofro com isso, mas há sempre que pagar qualquer atitude que se tome, de uma maneira ou outra.
Se eles pregarem a nova consciência, o novo pensamento a que todos nos temos de dedicar nestas circunstâncias que esta parte da Terra atravessa, ajudando o homem a regressar ao amor do planeta e a esquecer toda uma doutrina de positivismo que tem sido como um cancro que corroeu o Mundo, serão muito necessários.
Sei que, muitos deles fazem estudos muito profundos de história e arqueologia, dentro da sua busca da religião dos devanceiros, isso é útil, sim, mas tu sabes bem que a luta terá de ir por outros caminhos. E há muitos trilhos para se atingir o cume da montanha, não é verdade
Nesta luta, há que ter em mente que 30.000 contra 3.000, é uma derrota; mas 3.000 contra 30.000, é vitória. Entendes? Claro que sim.

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