Ricardo Carvalhal foi um dos mais ativos redatores do semanário A
Nossa Terra desde a sua fundação em 1916 e até 1918. Começou escrevendo peças
de opinião e a partir do número sete publicou também os seus "Contos do Pobo". Textos que pela sua qualidade literária e imaginação bem merecem atenção e resgate do esquecimento histórico.
"De min pra vós" foi o título da seção onde
apareceram os contos de Carvalhal desde o ano 1917.
Para além deste volume póstumo, o autor publicou um único livro em 1919 titulado "O secreto acobillado", editado na Crunha
pelo jornal "El Noroeste" no
suplemento "Terra a Nosa!"
A dia de hoje decidimos publicar este texto do autor que nos ocupa tirado da ediçao do Jornal A Nossa Terra de 10 de Maio de 1917. As suas palavras são fortes em alguns momentos, de tal forma que a dia de hoje alguns parágrafos seriam politicamente incorretos de muitos pontos de vista mas decidimos publicar porque vimos uma ideia básica que ainda hoje está na atualidade como é a de dividir os galegos em quatro classes de pessoas segundo a sua visão e atitude a respeito da Galiza: os parvistas, os centralistas, os libertistas e os nacionalistas são os tipos que ainda hoje podemos distinguir no nosso País. Talvez esses quatro grupos evoluíram e acabaram refinando-se de tal forma que hoje parecem mais "normais" mas independentemente da sua denominação e atitude social e política continuam a existir. Rogamos obviem os conceitos patriarcais e machistas que ele manifesta e mais algum outro a ver com termos como "raça" e cousas parecidas por outra parte bastante comuns na época que lhe tocou viver e portanto fruto da sua educação decimonónica. Esqueçam as diferença temporais (todo o mundo criticou aos seus pais ou avôs por estarem ultrapassados e fora da moda) e extraiam o fundamental da mensagem porque é de tremenda atualidade. O texto originariamente estava escrito com uma grafia e uma morfossintaxe própria da Galiza dos começos do século XX, afastada da sua origem galego-portuguesa e próxima ao castelhano, língua oficial da Galiza na altura, cuja norma conheciam aqueles autores galegos por estarem alfabetizados nela ainda que os seus usos habituais fossem no seu português galego nativo. Nós, transliteramos o artigo àquilo que os lusófonos de hoje percebemos como a nossa ortografia e à nossa morfossintaxe, históricas e próprias. Se conservarmos o original, o artigo viraria de dificultosa leitura e compreensão para quase 300.000.000 de pessoas em todo o mundo. Deste jeito, sem deixar de ser galego nem perder o seu sabor natural e espontâneo pode chegar a todo um mundo que fala a mesma língua do que nós, galegos.
Desde que o regionalismo
tomou cartas de natureza na Nossa Terra, surgiram quatro jeitos de
regionalistas: parvistas, centralistas, libertistas e nacionalistas.
Se não os conheceis, vamos vo-los apresentar:
Parvistas:
São a força maior, mas
a sua força é passiva, dormida, morta, inútil para o bem e para ao
mal. Força que constitui a nossa juventude falta de fé e de crença,
pela que se passa a vida, insensivelmente, como se passa pelas penas
baixas da costa a rompente do mar.
Se lerem, não o fazem
por apreenderem, pois estão faltos de senso comum para isso; lêem
os filósofos para depois nomeando-os na conversa ou nos escritos,
adquirirem uma miúda camada de verniz de falsa cultura.
São os eternos escravos
do “diz bem”. Se algum dos pro-homens a quem olham de joelhos
-não porque defenda o ideal X ou Y mas por ser um chefe ou um
caudilho- o viram comendo canhotos -que alguns comem às ocultas-
pela rua, tende por certo que os labregos achariam uma funda riqueza
na venda do que agora queimam por não servir para outra cousa. Têm
o mundo por um gigantesco cenário onde há que brilhar e ter luz,
ainda que este seja como a dos fogos-fátuos que sendo luz não
alumia e sendo fogo não aquece.
Para eles pertencerem a
um grupo de idealistas, precisam ver na longínqua um cargo de brilho
ou um emprego de estronício. Os ideais em que não há próximos
frutos onde o labor é anónimo e faz falta fé e constância sem ter
em prémio nem uma só e triste gabança, não serve para eles. São
por ser, não são porque o são.
Centralistas:
Os verdadeiros
regionalistas de folclore. Não são ativos nem passivos: não são
nada. Gabam em castelhano a formosura do nosso idioma e a doçura dos
nossos cantos porque o ouviram dizer, não porque o sintam nem o
compreendam. Nasceram aqui, como puderam nascer no Egito, na China ou
no Congo, pois esta classe de homens sem vontade, são fenómenos com
os que a sabia natureza quebra o conjunto viril duma raça.
Para eles não há outro
ideal do que as cousas feitas. Acharam feito o centralismo e
centralistas são. Se nasceram escravos, seguiriam-no sendo, não como a mansedume do boi que guiado por cativo rapaz é que o segue
aonde aquele o levar, sem se lembrar que com ...... (incompreensível no texto original) dondamente
chega-lhe, não com a força que tem, mas só com o peso do seu corpo
para desfazer-se dele com um singelo tirão da corda.
São os pobres de
espírito que vivem da esmola que lhes dão. A palavra rebeldia não a têm no seu dicionário. Onde os põem... ficam.
Eles vão chegar às filas do
nacionalismo quando o nacionalismo esteja feito. São homens a dispor
de menos serviços do que os calendários da parede, pois enquanto
estes têm uma folha para cada dia, eles só dispõem em troca de uma
folha para todo o ano: a das múmias.
Libertistas:
Pássaros de conta.
Escravos ao fim, acostumados à tralha do dono e que tendo pujos para
se redimirem e serem livres, querem dar um pulo até ficarem em
libertos, para não achar de menos a influência do dono.
Pregoam um regionalismo
com certas traças nacionalistas. Regionalismo que há que conseguir
-segundo eles- sem estridências de linguagem, com nojenta humildade,
com panos quentes. Aconselham temperança por rebeldia, agarimos por
ódios e silencio por berros, como se de este jeito chegássemos a
conseguir o mais pequeno adianto para a Nossa Terra, ou como se isso
não fosse o que se veio fazendo até agora.
A Nossa Língua para eles
é letra morta. Querem a Galiza em castelhano e ao cantarem-lhe os
seus quereres, só fazem dedicar-lhe em cada agarimo uma poutada e em
cada gabança uma ultraje.
Fitam a Galiza pelo
cristal de Castela e acham-na formosa sem lhe verem a pobreza e
valente sem lhe verem humildade. Lembram-se de Castela para
esquecer-se da Lusitânia. São tão maus e desleixados filhos que
odeiam à irmã de raça para dedicar-lhe os amores à madrasta. São
suas aspirações: ajoelhando-se e arrastando-se, conseguir um anaco(Anaco2)de liberdade para chegarem a libertos.
Somo-lo nós. Os bons e
generosos que empregamos o nosso idioma numa prosa baril e ergueita
que os que não a perceberam não souberam fazer. Temos poetas e
também não choram: berram! Cabanilhas, Rodrigues Gonçales, Taibo,
Lopez Abente e mais alguns que estão connosco, falam da terra
assovalhada para pedirem justiça e das injúrias para pedir
vingança. São poetas nacionalistas dos que não choram nem se laiam
como fêmeas. Seguem a escola de Curros e Pondal, os visionistas, os
que mantiveram aceso através duma época de poetas chorões e de
homens castrados, o agarimo à pátria.
Temos fé na luta e
esperança no porvir da Nação galega. Somos os rebeldes, os que
ignoramos a humildade, os que empregamos estridências de linguagem,
os que predicamos ódios para recolhermos tempestades e que elas caiam
sobre os culpados do nosso assovalhamento. Somos os guardadores da
tradição da nossa raça, o pequeno feixe de enxebres (significados 7, 13 e 14) que hão de
dar exemplo às consciências dormidas dos nossos irmãos. Os que
achamos que o sacrificar-nos pela pátria é um dever e lutar pela
liberdade é um direito. Ou galegos ou nada!!
Há na história da lexicografia portuguesa uma grave lacuna, esquecer,
propositada ou inconscientemente, uma realidade: que a língua e o léxico
de que consta, nasceu no território conhecido historicamente como
Gallaecia –GALIZA-, que abrangia, não as quatro províncias da atual
Galiza unida politicamente a Espanha, mas o território que ia de
Cantábria passando polas Astúrias, Leão e Samora, até ao Douro, ou ainda
usque ad Mondecum, como dizia sempre o saudoso Rodrigues Lapa.
Essa Gallaecia deu origem em romance à Galiza, não só à que pertence
hoje à Espanha, mas também a Portugal. Dizer que a língua nasceu na
Galiza (estou a referir-me ao território espanhol) é totalmente falso. O
mesmo de falso se dizemos que nasceu em Portugal. Nasceu num território
comum que hoje pertence politicamente parte a Espanha e parte a
Portugal, gostemos ou não da História. Disse politicamente porque
culturalmente continuamos a sermos os mesmos. E Galiza, como
reconheceram muitos intelectuais portugueses, que ultrapassaram o Minho,
é física, cultural e linguisticamente uma continuação de Portugal ou
vice-versa.
"Galiza é uma prolongação de Portugal ou Portugal é uma prolongação da Ggaliza, o mesmo me faz" Outeiro Pedraio.
De 18 a 23 de julho de 2005 celebrou-se na
Universidade de Santiago de Compostela o VIII Congresso da Associação
Internacional de Lusitanistas. Congresso no qual houve muitos
intervenientes galegos que desvendaram muitas questões do galego e da
cultura da Galiza. De então a hoje a Diretiva da AIL está constituída
por galegos. Os intelectuais amigos não podem ignorar isto se não querem
cair no ridículo. Nele apresentei eu também um trabalho intitulado Do
Návia ao Mondego Semente da Língua Portuguesa (Estraviz, 723-732). Nele
começo por justificar o título e digo:
Cartaz do Congresso da AIL (Associação Internacional de Lusitanistas) do ano 2014. O Autor está a se referir ao Congresso de 2005
O título podia ser: Do
Mondego (Paróquia de Sada, Corunha) ao Mondego (Coimbra), Semente da
Língua Portuguesa. Do Eu ao Mondego, Semente da Língua Portuguesa. Ou Do
Návia (nas Astúrias) ao Mondego, Semente da Língua Portuguesa, para
estabelecer os limites de um rio a outro, considerando-o mais de acordo
com a realidade histórica e corrigir em parte as palavras de João de
Barros na sua Gramática da Língua Portuguesa que fala no Minho e o
Douro.
"Nã sómēte ôs que achamos per escrituras antigas, mas muitos
q[ue] se usam antre Douro e Minho, conservador da semente portuguesa: os
quáes alguns indoutos desprezam, por nam saberem a raiz donde náçē"
(Buescu, 168).
Sempre houve pola parte portuguesa um afã por
ignorar as origens territoriais completas da sua língua. Não nego que
tanto da parte de Além como de Aquém Minho, se reconhece um momento na
História de uma literatura comum a ambas as partes, a dos Cancioneiros
Galaico-Portugueses das cantigas medievais. Mas a partir de uma
determinada altura, fora de importantes e contadas exceções, existe um
grande cuidado em prescindir da Galiza e dos Galegos. Ainda hoje, depois
de toda uma série de estudos, ao estarmos em grupo onde galegos e
portugueses reconhecem a unidade linguística, aparece sempre alguém que
fala na língua portuguesa e na língua galega como duas realidades
diferentes.
O problema parece surgir porque a Galiza do Sul se
converteu em reino independente e a do Norte passou a formar parte do
que seria com o tempo o Estado de Espanha. De aí que os dirigentes
portugueses confundissem independência linguística com independência
política, o qual dá origem a um crasso erro. Portugal politicamente
nunca foi território galego e Galiza cultural e linguisticamente nunca
foi território espanhol. Portugal não perde nada reconhecendo a
realidade galega como reconhece a brasileira junto com os países aos que
levou a língua e a cultura e que hoje formam a comunidade internacional
da Lusofonia. E Espanha ganha reconhecendo no seu conjunto um
território político onde se fala outra língua de igual categoria e
parecidas perspetivas internacionais. Galiza pode viver dentro de um
Estado de língua diferente, com cultura e língua comum a outro Estado
sempre que não se imponha nada contra a vontade. Há países onde convivem
harmoniosamente territórios de línguas diferentes e Espanha e Portugal
contam com outros estados independentes que falam as suas línguas.
Como nasce o nome da língua?
Em textos redigidos em território da atual Galiza temos diferentes
vocábulos ao referir-se a aquele falar que se vai diferenciando do
latim. Assim
"Na Historia Compostellana, texto latino do século XII,
aparece a expresión gallaeco vocabulo; e nunha relación de libros da
biblioteca do arcebispo compostelán Bernaldo II dáse notícia, arredor de
1226, dun libro vello de sermóns de littera galleca, que con seguridade
quererá indicar que estaba escrito en galego e non en latín" [...] Porén, a denominación
predominante era, en contraposición a latín, a de romanço (aparece a
fins do século XIV na Crónica Troiana e tamén nos Miragres de Santiago,
por exemplo), xuntamente coa de lenguagem, linguagem ou a nossa
linguagem, estas máis frecuentes en textos escritos en territorio
portugués".(Monteagudo, 1994: 171; Freixeiro Mato, 26)
O mais frequente é romanço, linguagem ou a nossa
linguagem, sem especificar território algum. Mas nos Miragres de
Santiago aparece já especificado:
"Osana fili[o] Dauidi", que quer dizer
en lingoajen galego: "señor faysnos salvos!" (Pensado, 27).
E na
Crónica de 1344 aparece especificada a linguagem com outro adjetivo:
"... el rei dom Vermudo era mal doente de hũa door dos pees a que os
físicos dizem pedraga, segundo a lĩguagem de Portugal" (Cintra III,
180).
Como se pode ver, dão-lhe o nome do território onde está o escriba
ainda que empreguem o mesmo léxico.
Resulta por isso muito
interessante pesquisar o que pensam os gramáticos portugueses a respeito
do território onde nasceu a sua língua. Nas primeiras gramáticas não se
fala para nada da Galiza, quer como parte integrante na Espanha, quer
como realidade política e linguística dos tempos antigos.
Fernão
de Oliveira, é o primeiro gramático português. Ele só menciona a Galiza
no capítulo 41 quando nos diz que de Galiza deriva o gentilício galego.
De resto quando tem que falar das particularidades linguísticas
históricas sempre fala do Minho para o Douro. Ignora totalmente o que
acontece do Minho para cima, do Minho até as Astúrias. Vejamos o que nos
diz:
"Mas porque dixemos que os nomes de nações faziam no
plural em ãos, alemão não faz assi, mas faz alemães, e bretão, bretões, e
assi haverá outros muitos. A parte desta regra que mais comprende é dos
nomes que mudam todo o ditongo, como lição, lições; podão, podões;
melão, melões. Estes nomes, posto que parecem mudar mais que nenhuns
dessoutros que já dissemos, todavia, se olháremos ao singular antigo que
já teveram, não mudam tanto como agora nos parece, porque estes nomes
todos, os que se acabam em ão ditongo, acabavam-se em om, como liçom,
podom, melom, e acrecentando e e s formavam o plural lições, podões, e
melões, como ainda agora fazem. E outro tanto podemos afirmar dos que
fazem o plural em ães, como pães, cães, dos quaes antigamente era o seu
singular pã, cã, cujo testemunho aindagora dá Antre-Dourominho (Torres,
147)
Resulta igualmente interessante o que nos diz no capítulo 47
ao falar dos verbos onde já não fala do Douro e o Minho, mas da Beira.
Eis o que nos diz:
"Nos generos dos verbos não temos mais que ha só voz acabada em o pequeno, como ensino, amo e ando, a qual serve,
como digo, em todos os verbos, tirando alghuns poucos como são estes:
sei, de saber, e vou e dou e estou e mais o verbo sustantivo, o qual
huns pronunçiam em om, como som e outros em ou, como sou, e outros em
ão, como são; e também outros, que eu mais favoreço, em o pequeno, como
so. No parecer da primeira pronunciação com o e m, que diz som, é o mui
nobre João de Barros; e a rezão que dá por si é esta: que de som mais
perto vem a formação do seu plural, o qual diz somos. Contudo, sendo eu
moço, fui criado em são Domingos dEvora, onde faziam zombaria de mim os
da terra, porque o eu assi pronunciava segundo que o aprendera na Beira
(Torres, 150-151).
Nestes textos Fernão de Oliveira, como veem,
não faz a mínima referência a como se dão esses fenómenos na Galiza. Só
se limita à parte portuguesa, do Minho para baixo. Como se sabe, essa
forma som que ele aprendera de pequeno, típica da Beira natal (e não
só), é ainda hoje a forma mais geral na Galiza. O seu texto naquela
altura era galego-português e hoje muito mais galego do que português.
João de Barros, que se atribui a honra de ser ele o primeiro a fazer
uma gramática da língua portuguesa, publica a sua obra em 1540. Segue na
mesma linha de falar do idioma do Minho para sul. Mesmo me baseei nele
para lhe dar título ao meu trabalho. Eis o que nos diz no Diálogo em
louvor da nossa linguagem:
"A my muito me contentam os termos
que se confórmam com o latim, dádo que sejam antigos: ca destes nos
devemos muito prezár, quãdo nam achármos serem tam corrutos, que este
labęo lhe fáça perder sua autoridáde. Nã sómēte ôs que achamos per
escrituras antigas, mas muitos q[ue] se usam antre Douro e Minho,
conservador da semente portuguesa: os quáes alguns indoutos desprezam,
por nam saberem a raiz donde náçē (Buescu, 168)
É na Gramática onde faz referência, não sei se ao galego da Galiza ou ao galego do norte de Portugal quando diz:
"Os mais dos nomes que se deviam acabár ē, am, se escrevem a este
modo. Razão, razões. E se o uso nam fosse contrairo que tem gram força
açerca das cousas, nam me pareçeria mal dester[r]ármos de nós esta
prolaçam e orthografia galega. Porque a meu ver quando quisęrem guardár a
verdadeira orthografia destas dições, se deve dizer, razam, e no
plurar, razões. Ca este, m, finál nosso tem aly o oficio do mem çerrado
dos hebreos, que e hũa das leteras que elles chamam dos beiços: a quál
lhos fáz fechár quando acábam nella, de maneira que se vay fazendo
aquella variaçam ocandose a vóz. E este ę hũ módo de áfrautár como se
frautam os instrumentos de musica. E entam os que pouco sentęm quęrem
remediar o seu desfaleçimento escrevendo agalegádamente: poēdo sempre,
o, finál ē todalas dições que acábam ē, am". (Buescu, 83)
Duarte
Nunes de Leão é o terceiro dos gramáticos importantes. Ele distingue
perfeitamente os galegos da Galiza. Eis o que nos diz em "Ortografia e Origem da Língua Portuguesa" quando intenta descrever o fenómeno da
confusão entre v e b:
"O que muito mais se vê nos Galegos e em
alguns Portugueses de Entre Douro e Minho, que por vós e vosso, dizem
bós, e bosso, e por vida, dizem bida. E quasi todos os nomes, em que há u
consoante mudam em b. E como se o fizessem às avessas, os que nós
pronunciamos por b pronunciam eles por v. (Buescu, 54)
Mais
adiante concreta ainda mais ao falar da terminação om que tinham os
Portugueses e que ainda continua viva nas gentes de Entre Douro e Minho e
nos Galegos. Eis o que nos diz:
"E a razão dos ditos
vocábulos se não escreverem por am e suceder aquelle ditongo, em lugar
das ditas letras, segundo tenho advertido, é a analogia e respeito que a
língua portuguesa vai tendo com a castelhana, que sempre onde a
castelhana diz, an ou on que é a sua particular terminação, responde a
portuguesa com aquela terminação de ão que sucede em lugar da antiga
terminação dos Portugueses de om que punham em lugar do an ou on dos
castelhanos. A qual ainda agora guardam alguns homes de Entre Douro e
Minho e os Galegos, que dizem, fizerom, amarom, capitom, cidadom,
tabaliom, apelaçom (Buescu, 90.)
Na Origem da Língua Portuguesa Nunes de Leão distingue a Galiza da Lusitânia ao falar da existência das letras:
"E os Gregos que habitavam Galiza e a Lusitânia e outras regiões de
Espanha teriam a língua grega e as letras gregas (Buescu, 206)
Mas onde Nunes de Leão especifica claramente o seu pensamento acerca do
galego é no capítulo VI: A língua que se hoje fala em Portugal, donde
teve origem, e por que se chama romance. Ouçamos as suas palavras:
"Depois deste cativeiro, vindo-se recuperar muitos lugares do poder
dos Mouros, pelas relíquias dos cristãos que da destruição dos Mouros
escaparam nas terras altas de Biscaia, Astúrias e Galiza. E, fazendo
cabeças de alguns senhorios, ficou aquela língua gótica, que era comum a
toda Espanha, fazendo alghũa divisão e mudança entre si cada hum em sua
região, segundo era a gente com que tratavam, como os de Catalunha,
que, por àquela parte vir el-rei Pepino de França com os seus, ficou
naquela província sabor da língua francesa e, se apartou, lhes ficou
notável diferença entre ela e a língua de Castela e das de Galiza e
Portugal, as quais ambas eram antigamente quase hũa mesma, nas palavras e
nos ditongos e pronunciação que as outras partes de Espanha não têm.
Da qual língua galega a portuguesa se avantajou tanto, quanto na
cópia como na elegância dela vemos. O que se causou por em Portugal
haver reis e corte que é a oficina onde os vocábulos se forjam e pulem e
donde manam para os outros homens, o que nunca houve em Galiza" (Buescu,
219-220).
Erra Nunes de Leão quando diz "o que nunca houve em
Galiza", pois
"Todos os reis se titularon reis da Gallaecia desde
capitais diferentes (Oviedo, Santiago ou León), se ben moitos deles
desde Afonso II asentaron a súa capital en Santiago ou na parte
occidental de Gallaecia, como Ramiro I, Afonso III, Ordoño II, Sancho
Ordóñez, Ramiro II, Afonso V, García e Afonso VII, fortalecendo e
estendendo o seu reino, e mesmo chegando no occidente até Coimbra xa con
Ordoño II. Para Camilo Nogueira Ramiro II "constitúe unha referencia
fundamental na construcción do reino galaico", pondo de relevo a
ocultación por parte de Sánchez Albornoz de documentación histórica onde
se cualifica a Ramiro II como rei dos galegos e estes a nación máis
poderosa. Bermudo II, fillo de Ordoño III e neto de Ramiro II, foi
educado en Santiago e coroado rei de Gallaecia na catedral compostelá,
reinando até o ano 999. No reinado do seu fillo Afonso V (999-1028) a
Gallaecia vaise estender cara aos territorios de Al-Andalus, ao sul da
Cordilleira Central. A Afonso V vaino suceder Bermudo III (1028-1037),
que é recoñecido como emperador por Sancho o Maior de Navarra; o seu
cuñado Fernando, consorte de Sancha e fillo de Sancho III, fora nomeado
por este, en 1035, como gobernante de Castela sobre un reducido
territorio na fronteira oriental de Gallaecia, cando o reino galaico
levaba séculos de existencia." (Freixeiro Mato, 2).
Manipulaçao da História da Galiza apagando o nome do País favorecendo interesses espúrios.
No mundo espanhol foram mais generosos. Eis o que nos diz o Marquês de Santilhana:
"E despues fallaron esta arte que mayor se llama e el arte comun
-creo- en los Reynos de Gallizia e de Portugal, donde non es de dubdar
quel exerçiçio desta sçiençia más que en ningunas otras regiones e
prouinçias de la España se acostunbró en tanto grado que non ha mucho
tiempo qualesquier dezidores e trobadores destas partes, agora fuessen
castellanos, andaluçes, o de la Estremadura, todas sus obras componían
en lengua gallega o portuguesa" (López Estrada, 59)
I Conde do Real de Manzanares e I Marquês de Santillana Íñigo López de Mendoza
Todos os
grandes vultos da Romanística defenderam a unidade linguística
galaico-portuguesa. Respeito dos galegos a lista seria interminável: Pe
Feijó, Pe Sarmento, Eduardo Pondal, Manuel Murguia, Antão Vilar Ponte,
Vicente Risco, Afonso Rodrigues Castelão, Otero Pedraio, Vicente
Biqueira, Evaristo Correa Calderão. A tradição galeguista até ao 1936
foi defensora destas ideias. Na atualidade o número de pessoas e
instituições cresce diariamente. Pola parte portuguesa: Carolina
Michaelis de Vasconcelos (que cunha o sintagma galego-português),
Rodrigues Lapa, Lindley Cintra, Maria Helena Mira Mateus; da parte
brasileira: Celso Cunha, Gladstone Chaves de Melo, Leodegário A. de
Azevedo Filho, Sílvio Elia, Reynaldo Valinho; espanhóis: Menéndez Pidal,
Dámaso Alonso, Manuel Alvar; outros: Coseriu.... No Congresso sobre a
situação atual da Língua Portuguesa no mundo, celebrado em Lisboa em
1983, aprovou-se polo Congresso a seguinte proposta:
"Primeiro ponto:
atendendo à situação actual dos estudos linguísticos, o Congresso
reafirma a tese de que o galego e o português são normas cientificamente
reconhecidas de um mesmo sistema que engloba as comunidades
linguísticas luso-brasileiro-africanas" (Atas, 587-588)
Ainda
mais: o professor Lindley Cintra, que trabalhou no ALPI junto com
Menéndez Pidal e outros, nos cursos da Universidade de Lisboa que
ministrava nos verãos, punha aos seus alunos fitas gravadas por ele em
diferentes localidades da Galiza e Portugal ao falar dos diferentes
dialetos –galegos e portugueses- que formavam a língua comum. E na
gramática elaborada por Celso Cunha e ele registam:
Mapa de Lindley Cintra e Celso Cunha
"Os dialectos do português europeu
A faixa ocidental da Península Ibérica ocupada pelo galego-português
apresenta-nos um conjunto de DIALECTOS que, de acordo com certas
características diferenciais de tipo fonético, podem ser classificados
em três grandes grupos:
a) DIALECTOS GALEGOS;
b) DIALECTOS PORTUGUESES SETENTRIONAIS
c) DIALECTOS PORTUGUESES CENTRO-MERIDIONAIS" (Cunha-Cintra, 10-11).
Eis também o que nos diz o ilustre gramático Evanildo Bechara:
"Foi este falar comum à Galiza e ao território portucalense que o
processo da Reconquista propagou em direção ao sul, sobrepondo-se aos
dialetos moçárabes aí correntes. [...] Até o séc. XV, segundo Orlando
Ribeiro, o Minho ainda não constituía limite lingüístico entre o galego e
o português.
O português, na sua feição originária galega,
surgirá entre os séculos IX-XII, mas seus primeiros documentos datados
só aparecerão no século XIII; o Testamento de Afonso II e a Notícia de
Torto. Curiosamente, a denominação "língua portuguesa" para substituir
os antigos títulos "romance" ("romanço"), "linguagem", só passa a correr
durante os escritores da Casa de Avis, com D. João I. Foi D. Dinis que
oficializou o português como língua veicular dos documentos
administrativos, substituindo o latim." (Bechara, 24).
De uns
anos para esta parte a questão politizou-se polo governo galego, que
defende a diversidade linguística, seguido servilmente polo governo
português, dando lugar a que ilustres conterrãneos portugueses também
mudaram de atitude. É esta uma atitude sem sentido. A ciência, neste
caso a ciência linguística não pode estar aos vaivéns de quem estiver no
poder. Toda ciência, incluída a línguística, tem que estar por cima de
muralhas e fronteiras, de particularismos e sentimentalismos. Nós assim o
consideramos.
Por isso, tendo em conta os avatares da história e
que quem prestigiou a língua e a levou fora das suas fronteiras foi
Portugal ao tempo que ampliava as suas conquistas, primeiro ao norte de
África e depois aos cinco continentes, e que internacionalmente é
conhecida por português, ainda que na história da literatura há um
espaço de tempo que se conhece como galego-português e mesmo que apareça
primeiro em documentos medievais como galego, o nome do idioma é
português quer para Portugal, Brasil e Palops como para a Galiza. Falar
hoje em galego ou português da Galiza é o mesmo. É o mesmo caso de
castelhano e espanhol. O de nomes é indiferente. O fundamental é que
estamos a falar da mesma língua.
Elaborar, pois, um dicionário
com o léxico da Galiza e dar-lhe o nome de Dicionário do Português da
Galiza não é nenhum absurdo nem disparate. O léxico recolhido aqui na
Galiza é o mesmo que se emprega em todo o norte de Portugal e mesmo na
Beira, na Estremadura e no Algarve. Os clássicos portugueses, Camões e
Gil Vicente, e os modernos como Camilo Castelo Branco e Torga, etc. são
mais galegos nos seus escritos do que portugueses lisboetas. Léxico este
que foi desterrado dos dicionários portugueses mas que,
afortunadamente, se está a introduzir nos dicionários atuais, como o da
Academias das Ciências de Lisboa, ainda que registados como localismos.
Mas localismos são todos, simplesmente que a uns se lhes tem mais em
conta do que a outros.
Dizer simplesmente que o Dicionário do
Português da Galiza não é um dicionário só para galegos ou portugueses, é
um dicionário para todos os que têm como língua o português.
Tendo em conta que Galiza continua a ser, linguisticamente, uma
continuação de Portugal para o norte e de que formamos um continuum
cultural e linguístico, ao redigirmos o material tivemos em conta esta
pertença e redigimos no Acordo Ortográfico do português europeu. Com
isto não queremos dizer que seja melhor do que a brasileira. E como em
Portugal se optou por uma dupla ortografia para muitos vocábulos que no
Brasil ficam inalterados, nós optamos pola variante tradicional mesmo
que nalguns casos coincidam Brasil e Portugal. Simplesmente por
coerência. Esperemos que Portugal e Brasil deem um passo mais para a
frente para assim termos um padrão ao que olharmos todos.
(Atas, 587-588) = Congresso sobre a situação actual da Língua Portuguesa no mundo, Actas,Volume I, Lisboa, 1985.
(Bechara, 24) = Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, 37ª edição atualizada pelo novo Acordo Ortográfico, editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2009.
(Buescu, 168) = João de Barros, Gramática da Língua Portuguesa (1540), Reprodução facsimilada, leitura, introdução e anotações por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, 1971.
(Buescu, 54, 90, 206, 219-220) = Duarte Nunes de Leão, Ortografia e Origem da Língua Portuguesa, introdução, notas e leitura de Maria Leonor Carvalhão Buescu, IN-CM, , Lisboa, 1983.
(Cintra III, 180) = Cintra, Luís Filipe Lindley, Crónica Geral de Espanha de 1344, Edição crítica do texto português, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1961.
(Cunha-Cintra, 10-11) = Celso Cunha-Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3ª ed. Sá daCosta, Lisboa 1986.
Estraviz, 723-732) = Estraviz, Isaac Alonso "Do Návia ao Mondego Semente da Língua portuguesa" em Da Galiza a Timor, A lusofonia em foco, Vol. I, pp. 723-732. Santiago, 2008.
(Freixeiro Mato, 26) = Xose Ramón Freixeiro Mato, Lingua galega: normalidade e conflito, Laiovento, 1997.
(Freixeiro Mato, 2) = Xose Ramón Freixeiro Mato, A Lingua das Cantigas, Congreso da Lingua Medieval Galego-Portuguesa na Rede, Vieiros.com, 1999.
(López Estrada , 59) = Francisco López Estrada, Las poéticas castellanas de la Edad Media, Madrid, Taurus, 1985.
(Monteagudo, 171) Henrique Monteagudo "Aspectos sociolingüísticos do
uso escrito do galego, o castelán e o latín na Galicia tardomedieval
(ss. XIII-XV)", em Estudios galegos en homenaxe ó profesor Giusepe Tavani,
Coord. Por Elvira Fidalgo e Pilar Lorenzo Gradín. Publicacións do
Centro de Investigacións Lingüísticas e Literarias Ramón, Piñeiro,
Santiago de Compostela, 1994.
Pensado, J. L. Miragres de Santiago, Edición y Estudio Crítico. Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid, 1958.
(Torres, 147; 150-151) = Fernão de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), ed. crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção, Lisboa, 2000.