(Mapa da Península Ibérica segundo a historiografia inglesa) |
Por José Manuel Barbosa
http://pgl.gal/o-parlamentarismo-nasceu-aqui/
O dia 6 de dezembro não se passou desapercebido no Reino da Espanha.
Os média e a sua orquestra áudio-visual premeram o acelerador da
pseudo-pedagogia política informando-nos do grande e boa que é a
Constituição de 1978. Tudo bem se não fosse que os mais grandes
opositores a essa Constituição são os que se auto-proclamam a si
próprios de “constitucionalistas”, que dizem defender a liberdade, a
igualdade e a fraternidade empregando o seu tempo político em conculcar
os direitos civis e políticos, em atropelar os direitos económicos,
sociais e culturais, em esmagar os direitos de terceira geração, como
são os chamados Direitos de solidariedade, e em fazer-lhe pensar à gente
que estamos no mais democrático país do mundo. Não sabemos bem se isto
que fazem é preparando um futuro prometedor para um totalitarismo à sua
imagem e semelhança ou é falta do sentidinho tão louvado por eles, que
embora vazio de conteúdo, permite limitar princípios filosóficos básicos
saídos do iluminismo do século XVIII, consolidados a sangue e fogo
durante o XIX e o XX após indesejáveis guerras, abusos e genocídios.
Mas se do 6 de dezembro ficou todo o mundo inteirado, não foi assim
com o 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, assim
declarado pela UNESCO desde 1948. Talvez, do nosso ponto de vista,
tivesse de ser esse dia 10 o que deveria ser feriado e não tanto o 6,
que em teoria é um fruto e consequência do primeiro.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, lei Suprema de toda a
Humanidade à qual se subordinam teoricamente todas as legalidades de
todos os países que admitem e assumem o Direito Internacional, incluído o
próprio Reino da Espanha, é a que está fazendo força jurídica e
filosófica contra o histórico conceito duma Espanha unitarista e
uninacional, pois na sua articulação está, entre outros, o Direito de
Autodeterminação que marca as agendas políticas da vida da Monarquia
Bourbônica nos últimos tempos.
Mas o conceito positivista da democracia na Península Ibérica teve as
suas origens no Reino atlântico e cristão do noroeste, enquanto os seus
antagonistas foram sempre as realidades políticas do centro sobre as
que se baseou o projeto de Estado-Nação sob e dentro do qual vivemos, em
parte de tradição andalusi sulista e em parte de tradição castelhana e
cristã nortenha.
O Reino denominado pela historiografia tradicional espanhola com o
nome de Reino de Leão, e que segundo as fontes do mundo medieval é
conhecido como o Reino da Galiza, ou de Galiza-Leão, foi o autêntico
protagonista do nascimento duma legalidade proto-democrática (A). Não vou
procurar raízes mas longínquas no Cilindro de Ciro do século VI a. C,
nem na Grécia clássica, nem no cristianismo primitivo onde não existiam
os conceitos de Direito. Nessa altura as pessoas sofriam os excessos de
poder dos governantes que herdavam os seus poderes dos deuses e nada
livrava à gente do comum de ser propriedade desses monarcas
auto-proclamados filhos e descendentes das divindades à moda, forem
estes da religião que forem.
(Mapa da Península no século X segundo as fontes árabes) |
Temos igualmente ideia que com os movimentos revolucionários europeus
de época Moderna, aconteceram os factos históricos que nos levaram ao
que hoje chamamos democracia e mesmo é que nos consta que até o século
XX a historiografia tinha reconhecida a Carta Magna inglesa
sancionada em 1215 para limitar os poderes de John I Lackland, o
primeiro ato histórico onde se pôs a origem do Parlamentarismo.
Sabido é que na Inglaterra do século XIII começa a funcionar uma
legalidade que impede o poder absoluto dos Reis que teriam a
responsabilidade de reinar, sendo-lhes limitada a sua autoridade com o
fim de evitar quaisquer abusos por parte dele ou dos nobres contra o
povo. Mas poucos temos conhecimento que em 18 de junho de 2013 a própria
UNESCO reconheceu que o texto mais antigo da Europa onde se pode
localizar a origem do Parlamentarismo foram os chamados “Decreta legionenses” saídos da “Cúria Plena”
reunida em Leão, capital do nosso Reino, em 1188. Nele recolhiam-se
importantes direitos individuais como o direito à inviolabilidade do
domicílio, o direito ao segredo dos correios, da propriedade, da
proteção que a justiça deve exercer contra qualquer abuso de poder por
parte dos nobres, o clero ou o próprio Rei contra a gente da comum e a
obriga que tinha o Monarca de convocar as Cortes para declarar a guerra,
resolver as querelas por meio da legalidade e da justiça, e ainda mais…
Posteriormente a estes Decreta elaborou-se em 1194 uma
Constituição para o território da Galiza Compostelana, quer dizer, da
Galiza atual que nos serviu de legalidade durante muito tempo (1).
O Parlamentarismo europeu parece ter a sua origem nestes movimentos
legislativos porque a elaboração de toda esta legalidade tinha sido
feita pela Cúria conformada tanto pelos nobres e o clero quanto
pela denominada gente do Comum, quer dizer, os representantes dos
burgos, ou na nomenclatura tradicional, os burgueses, conceito que no
século XIX e XX tomou outras conotações acrescentadas pelo marxismo e
que não deveriam obscurecer o significado que se lhe dá na
historiografia tradicional.
Este grupo social emergente durante a Idade Média e que tanto
protagonismo têm na História do nosso País foi o que delineou os
aconteceres dos nossos séculos XI, XII, XIII, XIV e XV e lhe deu carta
de identidade a todas as revoluções sociais que se levaram a cabo desde a
época de Gelmires até os Irmandinhos, identificando esta última como
uma das primeiras revoluções burguesas da História da Europa que atingiu
poder, junto com a Revolução Hussita na Chéquia. O interessante é que
triunfou e se manteve no poder durante três anos funcionando a Galiza
como uma “República monárquica”, muito galega na sua
ambiguidade concetual e muito britânica como se viu a partir do século
XVII quando começou o seu funcionamento o sistema bicameral inglês.
Nesta “República monárquica” irmandinha se bem a autoridade real e as decisões estavam nos dirigentes da Irmandade, a figura Real na que se baseava dita autoridade, atribuía-se ao Rei Henrique III de Galiza (e IV Castela) que em realidade não teve o poder de facto até que se livrou, na guerra civil castelhana, do seu irmão Afonso que aspirava ao trono.
(Mapa da Península Ibérica segundo a historiografia espanhola) |
O facto de ser reconhecido o nosso Reino como a origem do
Parlamentarismo europeu em tempos de Afonso VIII de Galiza-Leão
baseia-se em que os habitantes dos burgos tinham um espaço no
organograma de poder e parece ser que fomos os primeiros, muito antes de
que em Inglaterra fosse proclamada a Carta Magna que favorecia a entrada do estamento popular no esquema de poder do Reino britânico.
No entanto, temos uma outra referência anterior a 1188 que nos vem
dada por Manuel Fernandez Rodriguez num artigo para a Revista “Anuário de Historia del Derecho Español”
no seu número 26 do ano 1956 no que nos fala de que no Arquivo da
Catedral de Tui se conserva um privilégio de Fernando II, pai de Afonso
VIII, correspondente ao mês de março de 1170, entre o dia 18 e o 25,
datas em que o Rei esteve em Tui, no que se manifesta a presença dos
representantes dos burgos na reunião da Cúria convocada
relativamente ao traslado da cidade de Tui a um lugar mais seguro do
situado até o momento para se defender dos ataques de Afonso Henriques
quem no seu afã de se fazer com a posse da região de Toronho atacava
constantemente a cidade como cabeça da região. O texto diz:
(…) Ego, siquidem, Fernandus dei gratia ispaniarum rex, meo regno
providens bonorum hominum consilio, pontificum, militum, burgensium
civitatem tudensem cui ostium frequentissime parabantur insidie, (…)
Trad: (…) Eu, com certeza, Fernando, Rei dos hispanos (2)
pela graça de Deus, cuidando do meu reino por conselho dos homens bons,
prelados, nobres e burgueses da cidade de Tui onde tinham sido detidos
frequentemente os ataques dos inimigos, (…)
No texto dos Decreta de Afonso VIII, não nos fala explicitamente de “burgensium” como nos fala o documento de Fernando II, mas de “… electis civibus, ex singulis civitatibus…” o que nos apercebe da existência dos “procuradores”
dos Concelhos e representantes das cidades nomeados pelo Rei, quer
dizer, uma sorte de funcionários reais, mas nada nos diz que fosse essa a
primeira vez em que esta representação urbana ou burguesa estivesse
presente na Cúria.
Afonso VIII de Galiza |
Em 1964, uns anos depois da publicação do trabalho de Manuel
Fernandez Rodriguez, o professor Sanchez Albornoz y Menduiña, de
interessante lembrança pela sua relação epistolar com Castelão, publica
outro artigo na “Revista Portuguesa de História” na que nos diz que esse texto foi falsificado em época de Afonso VIII de Galiza (3)
de maneira que -segundo ele-, não podemos fiar-nos do seu conteúdo
(Sanchez Albornoz: 1964: pp 18-29). Não temos conhecimento dos
pormenores da intervenção da qual foi objeto o texto tudense, nem
sabemos a parte do texto manipulado, nem se a data ou a expressão onde
se nos fala que houve “burgensium” naquele pleno foi
modificada, acrescentada, manipulada ou inventada por alguém. Pode ser
qualquer parágrafo o suscetível de ser interpolado, qualquer palavra,
qualquer expressão, mas ficamos com a ideia principal e mais importante
sobre todas as outras de que não podemos fiar-nos do texto…
Visto o visto, e sabendo como foi que “Don Cláudio” falou e opinou
sobre nós nos seus escritos, sabendo como é que fez referência da nossa
realidade histórica, ainda ele reconhecendo certas realidades
incontestáveis -que o faz, devemos ser justos-, deixa para a letra
pequena e as notas a pé de página esses pequenos tabus historiográficos
já que quando deve pôr-lhe os nomes as cousas, o nome da Galiza não
aparece. Visto o visto, parece que deveríamos revisar o documento de
Tui, se não no-lo sequestram antes de que se nos ocorra estudá-los, para
darmos a nossa opinião galega sobre a veracidade do tal diploma
tudense.
De todas as maneiras, fosse em 1188 ou fosse em 1170 quando se
celebrou a primeira sessão dum Parlamento na Europa com participação
cidadã, quer em Leão, quer em Tui, sempre contamos com um antagonista
que sediou os seus reais no centro peninsular e que se fez com o projeto
político iniciado pelos galegos muito antes de que Castela fosse um
Reino ou mesmo antes de que tivesse esse nome. Com essas credenciais de
antagonista do ponto de vista nacionalitário e mesmo do ponto de vista
do avanço social que supõe a assunção da burguesia às instituições
políticas, a oposição da Castela Imperial foi manifestada contra nós
durante os séculos finais da Idade Média, XIII, XIV e XV, impedindo que a
gente das nossas cidades pudesse exercer o seu direito a aceder o
poder. É no nome dessa Castela, que a sua atual Nobreza, tão ressesa
como a sua antecessora medieval, celebra os 6 de dezembro o dia duma
Constituição de papel de madeira de eucalipto (4), na
se que reconhecem direitos na teoria mas que são conculcados na prática,
e não celebra, como devera ser, o 10 de dezembro promovido pela UNESCO,
que certifica que foi o nosso Reino medieval o que reuniu pela primeira
vez na História uma Cúria com representação popular, quer dizer, a reunião dum Parlamento, precursor das atuais democracias europeias.
Referências:
(A)
https://www.facebook.com/Despertadoteusono/posts/1671294792930012?hc_location=ufi
- Em 1187 houve umas Cortes em Castela, em San Esteban de Gormaz mas parece ser que não houve representação da gente do Comum. Os assistentes, para além da nobreza castelhana, incluiu os Meirinhos, funcionários de designação real os quais em qualquer caso não tinham voto, portanto as Cortes Castelhanas de 1187 não podem ser consideradas o primeiro evento político em que a representação popular esteve presente. Certo que os parlamentos podemos datá-los muito antes. Assim, por exemplo os AlÞingi islandeses datam de 930 e o Tynwald da Ilha de Man data, segundo a tradição, de 979 embora não haja documentação que assim o acredite. O seu primeiro registo em papel data do século XIII e em ambos os casos eram os poderosos os que geriam e dominavam a assembleia: os goðar no caso islandês e os nobres de origem escandinavo no caso manx sobre um povo de origem céltico submetido às suas leis. Como os primeiros registos do Tynwald datam do século XIII, estes são da época em que a gente do Comum começa a ter participação nas decissões comunitárias e portanto é da mesma época em que começam em outros lugares da Europa. Finalmente reparemos que o século XIII não é 1188 nem 1170, ambos do século XII.
- O facto de os Reis da Galiza se denominarem às vezes “hispaniarum reges” obedece à ideia imperial que os monarcas sediados em Leão tinham de si próprios já que a vocação dum projeto imperial de unificação territorial peninsular sob a autoridade legionense existia desde o tempo em que o neogoticismo ocupou a ideologia do Gallaeciense Regnum.
- Afonso IX diz Sanchez Albornoz, computando como VIII um Rei castelhano que nunca foi Rei galego nem leonês.
- Contava-nos Castelão no seu Sempre em Galiza o seguinte :
Nas Cortes Constituintes disse D. Miguel
de Unamuno que estávamos a fazer uma Constituição de papel. Eu era um
dos deputados que mais gostava de ouvi-lo falar nos “corredores”; mas
naquele dia dialogámos. Contei-lhe uma anedota que vou repetir agora,
pedindo-vos licença para apresentá-la encoira: “Estávamos num comício de
propaganda nas últimas eleições, e um velho petrúcio teimou em falar e
falou assim: “Agora imos fazer uma Constituição, que não vai ser como as
outras, porque esta imo-la escrever em papel de lixa para que ninguém
possa limpar o cu com ela” (pedoai-me tanta claridade em graça da funda
transcendência que o dito encerra). D. Miguel ceivou uma gargalhada e
depois de remoer a ideia do velho petrúcio fez-me uma preposição: “Esa
es la voz auténtica del pueblo y usted debe repetirla ahí dentro”. Eu
respondi-lhe que não tinha autoridade para falar tão claro no Salão de
sessões; mas mais duma vez senti tentações de gritar da minha bancada:
“Que se escriba eso en papel de lija!!”.
Não foi preciso que a Constituição
chegasse a velha para ser desprezada, pois os mesmos que a fizeram
encarregaram-se de lhe roubar o crédito. (…). (Castelão: Sempre em
Galiza: Livro II, Cap VII. Adaptação para Português de Fernando Vasquez
Corredoira. Ed. Através. 2010)