terça-feira, 6 de setembro de 2011

Crónica duma negligência.






Por Carolina Horstmann

Faz poucos dias chegou a minha caixa dos correios, uma curiosa ligação da UNESCO. Algum visionário contato da minha lista de amigos, teve a brilhante ideia de partilhar e enviar este interessante espaço. Tratava-se da Biblioteca Digital –em formato multilíngue- que expõe material mundial de jeito gratuito onde podermos achar mapas, manuscritos de diversa antiguidade e uma grande variedade de elementos curiosos ao olho de qualquer pesquisador.

Depois da primeira impressão, duma nascente sensação de agrado perante tão cuidada plataforma digital é quando começo a me lembrar das tarefas pendentes que tem a UNESCO, como herdeira dum importante pacto de nações com a humanidade.  Franziu-me a sobrancelha automaticamente e a minha mente não deixou passar revista à crescente listagem dos “deve” que esta entidade tem com o património cultural mundial.

No transcurso da nossa história, os conflitos armados trouxeram-nos  como consequencia imediata, não só a perda de vidas humanas, mas também, uma grande devastação dum ponto de vista cultural. Admitia-se como botim  de guerra válido a apropriação dos bens culturais do inimigo e a destruição de aqueles  que não podiam ser transladados. Uma simples consequencia da guerra. Algo inevitável.

Entre os anos de 1815 e 1863 começamos a ver as primeiras tentativas de intenção real por proteger estes bens, com o Congresso de Viena e a posterior assinatura do Código Lieber em 1863, no qual se estabelecia “o dever de proteger as obras de arte, coleções científicas, bibliotecas e hospitais de qualquer dano”. Imediatamente depois, em 1935, com a assinatura do Pacto Roerich é quando vemos a iniciativa real e consistente para o cuidado destes bens, procurando a sua proteção tanto em tempos de paz como em tempos de conflito armado.

Nicolai Roerich

O Pacto Roerich e a bandeira da Paz
O Pacto foi ideado por Nicolai Roerich, artista russo e autor de mais de 7000 quadros, filósofo, escritor e arqueólogo, quem plantejava constantemente nos seus artigos de imprensa, a importância da proteção dos monumentos face os efeitos destrutivos da Primeira Guerra Mundial, começando, já, naquela altura, a chamar a atenção das pessoas para protegerem a herança cultural do seu país.

Roerich cria um novo conceito de Cultura, por meio dos seus escritos de Ética viva e vai salientando uma diferença entre esta e a civilização, onde estipula que “enquanto a cultura se relaciona com o mundo espiritual do homem na sua autoexpressão criativa, a civilização não é mais do que a organização exterior da vida humana nos seus aspeitos materiais e civis. A confusão entre ambos os conceitos –sinala-, leva à pouca valorização do elemento espiritual no desenvolvimento da humanidade”.

É por isso, que em colaboração com George Chklaver, Doutor em Direito Internacional e Ciências Políticas da Universidade de Paris redigem o convénio sobre a proteção dos tesouros da cultura, que posteriormente há de ser conhecido como “O Pacto Roerich”. Assinado o 15 de Abril de 1935 em Washington, com a presença de representantes de vinte países de toda América.
Simbolo da Paz Proposto por Roerich


Esta nova visão da consciência selava-se com a aprovação do uso dum sinal específico, uma bandeira ideada para identificar os objetos ou lugares a serem protegidos: A chamada “Bandeira da Paz”. É uma bandeira branca que tem uma circunferência com três círculos de cor vermelho dentro de si. Tenta significar a totalidade da cultura e dentro –representado pelos pontos- a religião, a arte e a ciência. Descreve-se também como as relações da humanidade no passado, no presente e no futuro.

Há que sinalar o profundo significado humano que tem este símbolo arcano utilizado pelo Roerich, presente na arte e a expressão da humanidade desde tempos imemoriais, achando-se o mais antigo deles numas pedras de Mongólia, datadas há mais de 9.000 anos. Este símbolo é conhecido como “Chintamani” ou “Cintamani”, e pode ver-se em infinidade de obras a través da história; desde tapetes Otomanos até no brasão do Papa Pio XI.

Tapete Otomano e Brasão de Pio XI


Evolução da proteção dos bens culturais.?
Toda tentativa foi vã. Ainda com a Bandeira da Paz ganhando em conhecimento popular e ondeando em alguma instituição, a devastação da II Guerra Mundial foi muito grande. No término da guerra, a vontade dos homens e dos lideres dirigiu-se novamente em retomar as conversas, criando uma e outra vez Convénios e Reuniões várias através dos anos.

É em 1954 quando é retomado o Pacto Roerich como documento base para a redação do “Convénio Internacional da Haia sobre a proteção de valores culturais em caso de conflitos armados” destinando-se a Bandeira da Paz a proteger os objetos culturais de valor. Esse mesmo ano, em 16 de novembro passa-se esse convénio para mãos duma nova organização: a UNESCO:

Neste é que se compromete a resguardar e respeitar os bens das nações, entrando em vigor em 7 de agosto de 1956. Nele manifesta e reforça a ideia de utilização do convénio, o mesmo em tempos de paz como em tempos de guerra, resguardando-se primeiramente os objetos que têm valor artístico, histórico e arqueológico, os lugares que servem para salvaguardar elementos de valor e finalmente os centros monumentais. Até aí tudo bem.
O estranho começa com a mudança do agora chamado “Emblema dos Bens Culturais”, que não é necessário usá-lo em tempos de paz mas em tempos de guerra deve estar em lugar visível.

(Pergunto-me, qual o efeito no coletivo das pessoas a aparição dum símbolo que não têm visto nem conhecem)

Emblema de proteção geral e emblemas de proteção específica propostos pela UNESCO

As deficiências deste novo convénio são inúmeras. Na teoria estão resguardados os tesouros e o património cultural das nações, estando devidamente inscritos e pormenorizados. Portanto, se o governo que nos administra ou os nossos responsáveis culturais decidirem passar sobre o Castro galego da Lagosteira, por mais que lhes ponhamos autocolantes com o triplo emblema de proteção hão de arrasar igualmente o nosso património.


Outra das deficiências têm a ver com o desconhecimento dos Estados (e as suas forças armadas) sobre este pacto e o baixo número de Bens inscritos. Aliás, se não houver sanções claras às violações do convénio sobre destruição ou furto de obras de arte tudo fica em água de bacalhau. E o mais importante, quiçá: a nula necessidade de difusão em tempos de paz que os Estados têm. Inclusivamente os emblemas de proteção são difíceis de achar em internet.

Desde a promulgação até o dia de hoje, são incontáveis as listas de conflitos bélicos acontecidos. A destruição e os roubos (quer pela população, quer por encomenda) são maiores do que o retorno das peças ao seu lugar originário após finalizados os confrontos. Um exemplo claro foi o conflito da antiga Jugoslávia que sendo um dos países mais ativos e com maior número de bens inscritos para a sua proteção, perdeu quase o 70% dos mesmos e muitos dos seus tesouros devidamente “protegidos” ainda aguardam para ser devoltos à sua origem.

Temos portanto a UNESCO, que tira formosas páginas em internet mostrando-nos  um importante número de tesouros para ser partilhados pela humanidade mas politizada como qualquer Estado, onde só tem proteção quem a pede e ainda posteriormente entra num sistema de votação para ver se lha concedem ou não. O Estado que pede essa proteção está obrigado a manter-se atualizado no que diz respeito dos Convénios com o fim de levar conta das mudanças e poder estar ao dia quando se reclamar a proteção requerida.

Uma instituição como esta da que falamos, lenta e de baixa reação perante os acontecimentos deveria reconsiderar a sua praticidade. Para amostra chega com lembrarmos o acontecido na devastada Biblioteca de Bagdade em 2003, onde após de três roubos foi organizada uma expedição de expertos por parte da UNESCO  para valorizar os danos causados tanto na estrutura do edifício como de perdas causadas pelo bombardeamento. Ali só havia uma estrutura totalmente derruída  com uma perda de livros e manuscritos históricos comparável à destruição da Biblioteca de Alexandria há quase 2.000 anos. Informação sobre Mesopotámia, a Grécia de Alexandre o Grande, o Império muçulmano medieval entre outras cousas.... Tudo estragado. Perdeu-se aí, entre outras cousas, uma valiosa documentação que pormenorizava a História da Galiza em época da ocupação muçulmana. Informação muito importante para a historiografia Galega que poderia ver reconstruídos certos elementos historiográficos que hoje parecem obscuros para alguns e reafirmarem a ideia dum Reino Soberano e protagonista do acontecer peninsular na Idade Média.

Perante tanta imprecissão da UNESCO, porque não voltar ao símbolo arcano que está no profundo das nossas memórias e fazer acordar o afã de defesa do patrimonio e os bens culturais próprios em cada um de nós?. Porque não ir para além, incluindo-a no nosso imaginario vexilológico, utilizando-a também em tempos de paz? (tal e como acontece atualmente em diversas nações americanas).

Talvez fazê-las ondear em soutos e fragas. Pintá-las na língua antes de ser amputada das nossas memórias; ou instalá-la em mámoas e Montes Sagrados (como o Monte do Seixo ou o Monte Pindo), contra as máquinas e as eólicas. Fazer acordar a Paz-Ciência no coração dos seres humanos adormecidos desta Terra verde e cheia de História,, lembrando sempre que como disse Nicolai Roerich: “as ideias não morrem, dormitam às vezes, mas ao acordarem são ainda mais fortes do que eram antes do sonho”.




Webs Relacionadas:

2 comentários:

Milutxo disse...

Moi interesante reportaxe!!Descoñecia a maioria dos feitos que mencioas.
Parabens!!

Hosamis disse...

Muito interessante mesmo Carolina, como disse Milutxo aí em cima! Grata por nos acrescentar conhecimentos, e por nos conscientizar para atitudes da UNESCO, uma entidade tão bem vista internacionalmente, e por isso mesmo livre/ou quase de críticas.

Abraço, Hosamis.

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