sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Caradawc, Caráunio, Corocota.... e outros nomes de resistentes celtas.


Foto de Tânia Costa: http://www.facebook.com/Nimphae?fref=ts

Por José Manuel Barbosa
Há uns meses comunicava connosco o Professor e Académico da AGLP Doutor António Gil. Ele comentava-me que estava a ler o NIMBOS de Diaz Castro em cujo poema 22 “O berro das Pedras” diz: “Írios ou ártabros, bergantinhos ou caránicos, ei!” para depois falar das Vacas de Breogão. O Professor Gil Hernandez perguntava-nos sobre esses assuntos e nós respondemos desde a nossa humildade mas sobre o tema continuei dando-lhe voltas e queria comentar qualquer cousa sobre isso, sobre tudo reparando na palavra “caráunicos” e certas cousas que conclui.

Para nós a forma “caráunico” talvez tenha a ver com Caráunios. Este é o sobrenome que recebia um dos líderes da resistência celtíbérica contra Roma. Na épica do cerco de Numância existe a figura heroica de Rhetógenes Caráunio, um guerreiro que conseguiu salvar o cerco romano para pedir reforços com o fim de conseguir atacar os romanos na sua retaguarda.


Ῥητογένης δέ, ἀνὴρ Νομαντῖνος, ᾧ Καραύνιος ἐπίκλησις ἦν, ἄριστος ἐς ἀρετὴν Νομαντίνων, πέντε πείσας φίλους, σὺν παισὶν ἄλλοις τοσοῖσδε καὶ ἵπποις τοσοῖσδε ἐν νυκτὶ συννεφεῖ διῆλθε λαθὼν τὸ μεταίχμιον, κλίμακα φέρων πτυκτήν, καὶ φθάσας ἐς τὸ περιτείχισμα ἀνεπήδησεν αὐτός τε καὶ οἱ φίλοι, καὶ τοὺς ἑκατέρωθεν φύλακας ἀνελόντες τοὺς μὲν θεράποντας ἀπέπεμψαν ὀπίσω, τοὺς δ' ἵππους διὰ τῆς κλίμακος ἀναγαγόντες ἐξίππευσαν ἐς τὰς Ἀρουακῶν πόλεις σὺν ἱκετηρίαις, δεόμενοι Νομαντίνοις συγγενέσιν οὖσιν ἐπικουρεῖν. 

"Rhetogenes, um numantino alcunhado Caráunio, o mais valente do seu povo, após convencer cinco amigos, cruzou sem ser descoberto, numa noite de neve, o espaço entre ambos exércitos acompanhado de outros tantos servos e cavalos. Levando uma escada dobrável e apressando-se até o muro que rodeava o cerco saltaram por acima dele e depois de matarem os guardiões de cada lado, enviaram de volta os criados e subindo aos cavalos pela escada, cavalgaram até as cidades dos arévacos com ramalhas de oliveira de suplicantes, pedindo a ajuda para os numantinos pelos laços de sangue que uniam ambos povos..." (Appianus Alexandrinus. Historia Romana. Ibérica. XCIV)

Esse sobrenome faz-me vir à cabeça o nome de dous personagens igualmente resistentes como foram Caradawc chefe duma confederação britana formada entre os Catavellani e dos Trinovantes e vencido por Roma na Batalha do Rio Medway. Posteriormente fugiu até a terra dos Brigantes, ao norte onde a rainha Cartimandua capturou e entregou Caradawc ao Imperador Cláudio perante o que se apresentou com espírito orgulhoso e ameaçador. Cláudio admirado da sua amostra de belicosidade ainda encadeado decidiu perdoar-lhe a vida.


Também o chamado de Corocota mencionado unicamente por Dião Cásio como um "um certo bandido em Ibéria" que se fez dele um suposto guerreiro cântabro que resistiu Roma nas denominadas Guerras Cântabras é outro dos nomes.

Dião Cássio diz-nos dele na sua “Historia Romana”:

Κοροκότταν γοῦν τινα λῃστὴν ἐν Ἰβηρίᾳ ἀκμάσαντα τὸ μὲν πρῶτον οὕτω δι' ὀργῆς ἔσχεν ὥστε τῷ ζωγρήσαντι αὐτὸν πέντε καὶ εἴκοσι μυριάδας ἐπικηρῦξαι, ἔπειτ' ἐπειδὴ ἑκών οἱ προσῆλθεν, οὔτε τι κακὸν εἰργάσατο καὶ προσέτι καὶ τῷ ἀργυρίῳ ἐκείνῳ ἐπλούτισε.

Era um ladrão chamado Corocotta, o qual surgiu em Ibéria quem o incomodou tanto (a Augusto, entende-se) ao principio que ofereceu duzentos cinquenta mil (entendemos denários) ao homem que o conseguisse capturar vivo; mas depois quando o ladrão foi a ele pela sua própria vontade, não só não lhe fez qualquer dano, mas em realidade o fez mais rico pela quantidade da recompensa. (Dio Cassius LVI, 43, 3)

Filme: Los Cántabros

Os cântabros-santanderinos de hoje fazem-no nativo da Comunidade Autónoma de Cantábria....quando em realidade não se diz que fosse cântabro mas um bandido da Ibéria, segundo a teoria de Schulten. Na altura os que estavam contra Roma eram bandidos e por isso tirou a conclusão de ser ele um chefe militar das tribos cântabras confrontadas contra o Império. O ser nomeado de bandido, muito comumente era por razões de oposição militar e política contra o Império. Neste caso poderia significar que o Corocotta do que falamos lutasse nas guerras cântabras  contra o Imperador Augusto, mas do nosso ponto de vista, estas atingiam territórios muito mais amplos do que a atual ou a velha Cantábria, nomeadamente, os territórios das atuais Galiza, o Norte de Portugal, Astúrias com Leão e também a Cantábria histórica... Dião Cássio fala dele como consequência da morte de Augusto acontecida em 14 d.C e nessa altura os únicos territórios sem pacificar da península são os citados.

Tanto Caráunio, como Caradawc como Corocota tem a ver com o nome que recebiam os chefes político-militares célticos e nomeadamente galaico-cantrabro-astures: Corono (os velhos, os respeitáveis...) mas também pode ter a ver com o labor de guia ou chefe militar ou tribal. Achamos o nome dum Lucius Corona Severus, soldado pertencente à Legio VII Gemina, numa inscrição achada em Astúrias. Fala-se-nos dela no libro “Legio VII Gemina (Pia) Felix. Estudio de una legión romana” escrita por Juan José Palao Vicente e publicado pela Universidade e Salamanca. Curiosamente os únicos lugares onde se têm achado epigrafia com nomes com esta raiz: Coroc..., Corocuta, Corocaudius, Corocaudi ou Croci é em zona linguística galaico-lusitana (ver mapa do Atlas Histórico da Galiza do qual sou co-autor) mas concretamente em Chaves, Bragança, Valpaços, Ujo (Astúrias) e Badalhouce.

Com certeza que o nome “Corona” “Coronia” ou “Coronha” poderia ter a ver com a origem da cidade da Crunha ou Corunha proveniente talvez dessa etimologia originária.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A lírica trovadoresca e a poesia arábico-andaluza



Por Maria de Fátima Santos Duarte Figueiredo

A lírica trovadoresca galaico-portuguesa é a mais antiga forma poética portuguesa, sendo normalmente delimitada entre o fim do século XII e a morte do conde de Barcelos, D. Pedro, entre 1354 e 1364.
Dela, destacamos a cantiga de amigo, caracterizada pela enunciação feminina e pela existência de um refrão, que afastam de imediato das cantigas de mestria de outro género, o das cantigas de amor.
A existência de paralelismo e a proximidade à poesia oral e popular tem levado a dúvidas acerca da origem destas composições poéticas, surgindo quatro teses: a que defende uma origem palaciana, europeia e cortês, através de uma matriz latina medieval; a que aponta uma origem autóctone, ibérica; a tese de que Rodrigues Lapa é representante, a de uma origem literária, de matriz latina e a que defendem Julián Ribera e A. R. Nykl, na primeira metade do século XX: a teoria arábico-andaluza.
Menéndez Pidal, em Poesia Árabe y Poesia Europea, defende as teorias autóctone e arabista, espelho literário de um cruzamento social e cultural ibérico perfeitamente natural e fruto de um entendimento que fugia às lutas que eram mais políticas do que religiosas.
É possível encontrar semelhanças entre a poesia arábico-andaluza, cujo primeiro poeta aparece nos fins do século IX, e a lírica trovadoresca, quer no que respeita às cantigas de amigo quer às de amor, tendo a poesia provençal aparecido apenas no início do século XII.
Nas composições poéticas (canções) de Guilherme IX e de Marcabrú, já surge a figura do “gardador” (Menéndez Pidal, Poesía árabe y poesía europea, 56) da mulher, incumbido pelo marido ou rival de observar os seus passos. A personagem com a função de vigilante e que, por isso mesmo, angustia os amantes, aparece igualmente nos poemas árabes zejelescos, com o nome raqíb.
Na página 65 daquela obra, o autor refere que “Ribera llamó la atención sobre el zéjel 141 de Aben Guzmán, que es parodia de una albada, cantando con cierto humorismo la separación de los amantes al amanecer, y en otro zéjel, el 82, la estrofa final desliza un verso en romance, alba, alba, es de luz en una die, sin duda estribillo de una albada mozárabe.”, deduzindo-se daqui que a alba já era escrita na Andaluzia, não sendo uma criação dos trovadores provençais, pois estes começaram a escrever composições deste género mais tarde do que os poetas andaluzes.
No entanto, a poesia andaluza também terá sofrido influências, referindo Menéndez Pidal que “Aben Bassam nos dice que Mucáddam cantaba en un árabe popular mezclado de aljamía o romance mozárabe andaluz, y esta mezcla nos deja suponer el influjo de una lírica popular de los cristianos de Andalucía, por lo menos en cuanto al estribillo, elemento extraño a la poesía árabe, y para el cual parece que Mucáddam inventó el nombre de markaz, al decir de Aben Bassám.” (op. cit., 70), acrescentando que “Ribera cree que Mucáddam no se debió inspirar en una lírica romance andaluza, sino en una lírica importada por los gallegos en Andalucía.” (ibidem). Estes galegos, em número considerável, terão integrado a população de várias regiões da Hispânia, sendo respeitados “por su belleza física, por su ingenio y habilidad” (op. cit., 71), tendo a poesia galega uma enorme relevância, nesta altura: “La excepcional importância que la lírica gallega tuvo en los siglos XIII e XIV hizo a Ribera suponer que debió ya estar floreciente en la época primitiva.” (ibidem) O tema mais tratado, nestas composições reduzidas, é o da jovem que se lamenta da separação ou ausência do habib (amigo), interpelando a mãe como forma de receber consolação para a sua angústia.
Relativamente às cantigas de amor, há semelhanças na conceção do próprio Amor, sendo o idealismo amoroso, na literatura árabe oriental, tratado já desde o pré-islamismo. Geralmente, crê-se que, nos poemas árabes, predomina um amor apenas sensual, expresso numa explosão de sentidos. No entanto, como refere Ramon Menéndez Pidal, na obra acima mencionada, “ El filósofo cordobês Aben Házam en su Libro del Amor, escrito em 1022, se inspira siempre en un idealismo erótico, que conviene en muchos puntos con el amor trovadores” (59), surgindo o amante submetido à amada, tema este que já era tratado dois séculos antes pelo califa de Córdoba Al-Hákem I.
Galega no harém
A submissão, a obediência e o servir por amor são tópicos temáticos presentes nos poemas andaluzes e na literatura árabe, em geral. A estes, acrescenta-se ainda a referência à mulher, mas usando o masculino, o que também se verifica na lírica trovadoresca provençal e, mais tarde, na galaico-portuguesa. Aben Házam, para referir a mulher, usa os seguintes vocábulos, no masculino: sayyidi, que significa “mi señor”, e mawláya, isto é, “mi dueño”, usando os provençais a palavra midons.
O conceito poético do homem que se entrega ao Amor, submetendo-se com humildade e resignação a uma mulher que não reconhece a sua importância e dedicação, que sente comprazimento nesse amor de que nada pode esperar e ainda assim o aceita, sendo um Amor sem recompensa, não existe na literatura latina. No entanto, surge muito na poesia árabe como, por exemplo, nos poemas zejelescos de Aben Guzmán e num zejel de Aben Labbána de Denia, de antes de 1091, citado por Menéndez Pidal, na obra anteriormente referida: “pero mi corazón, añade el amante, está lleno de dulzura hacia aquella que me maltrata” (62).
Página de um cancioneiro provençal do s. XIII da autoria de Arnaut Daniel
Na poesia provençal, como sabemos, surge a mesma submissão amorosa e o comprazimento no sofrimento amoroso e depois, por imitação, na lírica galaico-portuguesa, culminando na morte por amor.
(Ligação: A invenção do amor)
  • O zéjel
O zéjel é um trístico monórrimo com refrão e com um quarto verso de rima igual em todas as estrofes, que se repete no quarto verso de todas as estrofes da mesma composição poética, de que Menéndez Pidal, em Poesia árabe e poesia europea apresenta como exemplo a composição número cinquenta e um do Cancioneiro de Baena, de Afonso Alvarez de Villasandino (17) e que tem a mesma forma métrica e estrófica que o zéjel número catorze, de Aben Guzmán.
Como menciona Maria Jesus Rubiera Mata, em “Jarchas de Posible Origen Galaico-Portugues”, “la poesia estrófica andalusí, moaxajas y zéjeles eran canciones,estaban musicadas”( in Actas do IV Congresso da Associação hispânica de Literatura medieval, vol. IV, 79).
As formas zejelescas da poesia hispano-arábica encontram-se presentes na poesia trovadoresca dos primeiros trovadores provençais, de que se destaca Guilherme da Aquitânia. Nesta, encontram-se, de acordo com Julián Ribera e A. R. Nykl, alguns assuntos relacionados, tal como na poesia árabe da época, com a ideologia amorosa: a forma como o próprio Amor é encarado e tratado e a idealização da Mulher, por exemplo.
No entanto, Rodrigues Lapa manifesta-se contra essa influência, tendo procurado provar que, antes de Aben Guzmán, o zéjel já era conhecido, usando, para tal, alguns exemplos de estrofes com versos monórrimos, na poesia latina do século XI. Na opinião de Menéndez Pidal, esses exemplos não são, contudo, suficientes para provar que o zéjel é de origem latina, uma vez que apresenta especificidades que não se encontram na poesia latina.
Segundo o último autor mencionado, a poesia galego-portuguesa não apresenta esta influência e as respetivas composições, quanto à sua forma estrófica, não revelam, na grande maioria, a mesma que a do zéjel (aaab) .
Há, no entanto, uma excepção: as cantigas do Cancioneiro de Santa Maria, do rei Afonso X, cujas estrofes são quase todas de trísticos zejelescos. Menéndez Pidal considerou-as galaico-portuguesas pela língua, mas castelhanas, pela natureza, com influência árabe na forma e tema religioso cristão.
Em relação à poesia provençal da primeira metade do século XII, aquele autor encontrou a precedência da lírica árabe peninsular, o que comprova que esta foi levada para o sul de França e lá implantada. O mesmo adverte, aliás, para o facto de os muçulmanos terem usado esta forma métrica muito antes dos cristãos, salientando o poeta cordobês Aben Guzmán, que escreveu poesia entre o fim do século XI e início do século XII e teve uma vida de trovador errante, desde 1094, o que é bastante importante, pois permite constatar uma das muitas possibilidades de contacto entre os poetas de então, deslocando-se de reino em reino, o que permitia difundir e trocar conhecimentos.
Este intercâmbio cultural é ilustrado, na obra Poesia Árabe y Poesia Europea, numa iluminura que consta de Cantigas de Santa Maria, na qual um jogral cristão toca alaúde com outro, mouro, partilhando a mesma bebida, (Adalberto Alves, Arabesco, Da música árabe e da música portuguesa), num intercâmbio cultural ilustrativo do que acontecia, na realidade, na sociedade hispânica medieval.
Para provar a origem árabe do zéjel, Menéndez Pidal, em Poesia Árabe y Poesia europea (19) refere que, segundo dois escritores muçulmanos, Aben Bassám, de Santarém,e Aben Jaldún, de Tunis, o seu criador foi Mucáddam bem Muáfa el Cabrí, o Cego, que viveu em Córdoba no fim do século IX e primeiro quartel do século X. Segundo eles, a estrofe inventada por este teria um markaz, ou seja, um refrão, em árabe popular e romance falado por moçárabes cristãos, sendo então o zéjel o resultado de duas culturas. A nível de conteúdo, apresentava dois assuntos: o amor, na primeira parte e o elogio a alguém, na segunda parte, sendo então esta forma a substituta da quasida árabe clássica: “ Aben Jaldún nos dice que el zéjel vino a ser el substituto vulgar de la casida árabe clásica” (op. cit., 20).
Segundo Aben Jaldún, refere Menéndez Pidal, na página 20, esta forma seria substituta da quasida árabe clássica, que também apresentava estes dois temas e por esta ordem.
No entanto, segundo Menéndez Pidal, há aspetos que a distanciam do mundo árabe: a divisão estrófica, o uso do estribilho no fim de cada estrofe, o tema da separação dos amantes, ao amanhecer, o facto de não serem tratados assuntos caracteristicamente árabes e presentes na quasida, como as viagens por regiões desertas, a vida nómada, o camelo...
O zéjel, tendo surgido na Península Ibérica, reflete a mistura, a simbiose das culturas cristã e árabe, o que faz com que esta forma seja tipicamente ibérica: há a referência a festas e épocas do calendário latino, vozes e frases românicas andaluzes, misturadas com o árabe, o que prova que a literatura é um espelho da sociedade em que é produzida e de que árabes e cristãos não viviam, afinal, num clima constante de inimizade como a História oficial quis fazer fazer crer (D. Afonso X e D. Dinis tinham poetas e músicos árabes nas suas cortes).
Mucáddam teve vários seguidores, pelo que o zéjel perdurou, tendo sido o primeiro a usar esta forma o cordobês Aben Abd-el-Rábbihi; no entanto, o mais conhecido é Aben Guzmán, por ter deixado uma significativa colecção de zejéis (m.1160).
A poesia árabe-andaluza e a forma zejelesca aparecem, pela primeira vez, na Europa, na obra do duque Guilherme IX, de Aquitânia, que sabia árabe e era contemporâneo de Aben Guzmán e a estrofe trística aparece também no início da lírica galego-portuguesa, na qual se destaca Lope Díaz de Haro, senhor de Vizcaya, o maior dignitário da corte de Afonso VIII desde 1206, usando a língua da Galiza, onde se metrificava de acordo com a estrofe andaluza.
A estrofe zejelesca não apresentava dificuldades de interpretação, pois a língua usada era uma mistura de árabe com romance, o que facilitava sua compreensão e assim, foi usada não só na poesia de corte, como na de D. Dinis e do conde de Barcelos, como também na popular, de que é exemplo a bailada Avelaneiras frolidas, de Airas Nunes. Devido a este grande intercâmbio cultural realizado com e através do zéjel, Menéndez Pidal, em Poesia árabe y poesia europea, considera que ele é “más expresivo aún que la conocida miniatura de las Cantigas de Alfonso X, que representa um juglar moro y outro Cristiano acompañandose el uno al outro en su canto.” (45), que Adalberto Alves incluiu na sua obra Arabesco, Da música árabe e da música portuguesa, como já foi referido.
Em relação à existência da estrofe zejelesca nas poesias árabe e românica, é inegável a ligação entre elas, sendo de destacar que a cultura árabe predominou entre os séculos X e XIII e que os exemplos de composições arábico-andaluzes são muito antigos. De acordo com a teoria arábico-andaluza, tal comprova que a poesia românica imitou a árabe, mas há também que não esquecer que, no ano 900, Mucáddam de Cabra escrevia poesia usando refrões com vozes moçárabes, pelo que é provável que se baseasse numa canção românica andaluza, que poderia ter-se desenvolvido ao mesmo tempo que a árabe e em dialeto moçárabe, tal como em galego e provençal, por exemplo.
  • As kharjas
Em 1948, no trabalho “ Les vers finaux en espagnol dans le muwassahs hispano-hebraiques”, S. M. Stern descobriu e divulgou vinte poemas de poetas judeus da Península Ibérica da primeira metade do século XI e do século XII, anteriores assim à primeira lírica europeia em língua vulgar, a provençal.
Estes são poemas curtos, que formavam o último simt ou qufl, uma espécie de refrão das muwassahat ibérico-árabes ou hebraicas, pois esta forma poética é árabe, mas pode aparecer quer em árabe culto quer em hebraico.
Inicialmente, pensou-se que as kharjas serviam de conclusão às composições poéticas, mas depois percebeu-se que eram autónomas em relação àquelas e escritas em moçárabe do sul da Península, havendo, por vezes, quer o uso de romances quer termos árabes peninsulares.
Os versos das kharjas encontram-se escritos na variedade vulgar do árabe peninsular e apenas quatro estão escritos em moçárabe, o dialeto usado no Andaluz, enquanto o resto da composição poética apresenta a modalidade do árabe ou hebraico eruditos ou literários.
Em 1952, Emílio García Gómez divulgou mais vinte e quatro kharjas, inseridas em poemas árabes, datando a maioria das que se encontram conservadas do período entre a primeira metade do século XI e o século XII. No que respeita às árabes, as mais antigas datam da altura dos reinos taifas, encontrando-se na produção de Ibn ´Ubada e Ibn Al-Mu´allim, vizir do rei Al- Mu´tadid,de Sevilha (1042-1069), pai de Al-Mu´tamid.
Quanto à enunciação, as muwassahat e as kharjas distinguem-se. Nas primeiras, o sujeito de enunciação é masculino, enquanto que, nas segundas, é feminino, expressando-se uma donzela apaixonada, pelo que se aproximam das cantigas de amigo da poesia galaico- portuguesa.
Geralmente, surgem em quadras, expressando aquela donzela um lamento pela ausência do habibi ou amigo, havendo também, por vezes, a interpelação à mãe, de forma a encontrar consolo para o desespero amoroso. Estas duas figuras, a do amigo e da mãe, surgem igualmente nas cantigas de amigo, podendo então ter havido veios comunicantes entre o norte e o sul da Península Ibérica e ocorrido uma influência mútua directa entre os poetas árabes e cristãos.
Com a descoberta das kharjas, levantou-se a hipótese da existência de uma tradição lírica românica, na primeira metade do século XI, relacionada com a presença de cristãos que, na Andaluzia, sob a plena influência árabe, mantinham a sua língua e costumes e assim, a lírica provençal deixaria de ser considerada a primeira literatura neo-latina em língua vulgar e Guilherme de Aquitânia não seria o poeta mais antigo da literatura europeia em língua vulgar. No entanto, não se deve menosprezar o facto de mais de dois terços das kharjas conterem arabismos, muitos deles na rima, havendo também cláusulas escritas completamente em árabe vulgar, pelo que aquela posição, defendida por Menéndez Pidal, não pode ser plenamente comprovada.
Por outro lado, R. Hitchcock defende, desde 1973, que o elemento árabe, nas kharjas moçárabes, é muito maior do que se tinha considerado, afirmando que se devia considerá-las escritas “totalmente em árabe vulgar e não como textos romances, pelo que as kharjas deixariam de ser o primeiro capítulo na história da poesia europeia.” (Dicionário da literatura medieval galego-portuguesa, 370). Além disso, nelas eram usadas versos de poetas árabes, como, por exemplo, estribilhos de zejéis de Ibn Quzman, que foram usados como kharjas em muwaxahas de poetas árabes e hebraicos, que viveram depois dele.
Dois séculos antes dos autores galego-portugueses, já poetas árabes tinham usado as kharjas, com características comuns às cantigas de amigo da lírica galego-portuguesa, pelo que aquelas poderão ser consideradas uma espécie de “cantigas de amigo” árabe-andaluza.
Estes textos comprovam assim a existência de uma sociedade trilingue, na qual se inseriam e conviviam árabes, cristãos e judeus, refletindo um ambiente riquíssimo, a nível social e cultural, no território peninsular ibérico.

Bibliografia

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ALVES, Adalberto, Arabesco, Da música árabe e da música portuguesa, Assírio & Alvim, Lisboa,
1989

_____ O meu coração é árabe, a poesia luso-árabe, 2ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa,
1991

_____ Portugal e o Islão, escritos do Crescente, colecção Terra Nostra, Editorial Teorema,
Lisboa, 1991

_____ Al-Mutamid, poeta do destino, Assírio & Alvim, Lisboa, 1996

_____ Portugal e o Islão iniciático, 1ª edição, Edições Esquilo, Lisboa, 2007

DIAS, Aida Fernanda, História crítica da Literatura portuguesa, direção de Carlos Reis, 1ª edição,
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FERREIRA, Maria Tarracha, Poesia e prosa medievais, Biblioteca Ulisseia de autores portugueses,
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LANCIANI, Giulia e TAVANI, Giuseppe, Dicionário da Literatura medieval galega e portugue-
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LE GOFF, Jacques, Os intelectuais na Idade Média, tradução de Margarida Sérvulo Correia, 2ª
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NEMÉSIO, Vitorino, A poesia dos trovadores, Obras-primas da Língua portuguesa, Livraria
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PAREJA, Eduardo Iañez, História da Literatura universal, A Idade Média, Planeta Editora, volu-
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PIDAL, Ramón Menéndez, Poesía árabe Y poesía europea, 6ª edição, Espasa-Calpe, Madrid,1973

ROUGEMONT, Denis de, O Amor e o Ocidente, tradução de Ana Hatherly, 2ª edição, Coleção
Margens do Texto, Moraes editores, Lisboa, 1982

TAVANI, Giuseppe, Trovadores e jograis, Introdução à poesia medieval galego –portuguesa, Edi-
torial Caminho, Lisboa, 2002


Outros textos

D.Denis: um Poeta Rei e um Rei Poeta”,Elsa Gonçalves, Actas do IV Congresso da Associação hispânica de Literatura medieval, organização de Aires A. Nascimento e Cristina Almeida Ribeiro, volume II , Coleção Medievália, Edições Cosmos, Lisboa, 1993, 13-23


Jarchas de Posible Origen Galaico-portuguesa”, Maria Jesus Rubiera Mata, Actas do IV Congresso
da Associação hispânica de Literatura medieval, organização de Aires A. Nascimento e Cristina Almeida Ribeiro, volume IV, Coleção Medievália, Edições Cosmos, Lisboa, 1993, 79-81

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