Por Maria de Fátima Santos Duarte Figueiredo
A lírica trovadoresca
galaico-portuguesa é a mais antiga forma poética portuguesa, sendo
normalmente delimitada entre o fim do século XII e a morte do conde
de Barcelos, D. Pedro, entre 1354 e 1364.
Dela, destacamos a cantiga de amigo, caracterizada pela
enunciação feminina e pela existência de um refrão, que afastam
de imediato das cantigas de mestria de outro género, o das cantigas
de amor.
A existência de paralelismo e a proximidade à poesia
oral e popular tem levado a dúvidas acerca da origem destas
composições poéticas, surgindo quatro teses: a que defende uma
origem palaciana, europeia e cortês, através de uma matriz latina
medieval; a que aponta uma origem autóctone, ibérica; a tese de que
Rodrigues Lapa é representante, a de uma origem literária, de
matriz latina e a que defendem Julián Ribera e A. R. Nykl, na
primeira metade do século XX: a teoria arábico-andaluza.
Menéndez Pidal, em Poesia Árabe y Poesia Europea,
defende as teorias autóctone e arabista, espelho literário de um
cruzamento social e cultural ibérico perfeitamente natural e fruto
de um entendimento que fugia às lutas que eram mais políticas do
que religiosas.
É possível encontrar semelhanças entre a poesia
arábico-andaluza, cujo primeiro poeta aparece nos fins do século
IX, e a lírica trovadoresca, quer no que respeita às cantigas de
amigo quer às de amor, tendo a poesia provençal aparecido apenas no
início do século XII.
Nas composições poéticas (canções) de Guilherme IX
e de Marcabrú, já surge a figura do “gardador” (Menéndez
Pidal, Poesía árabe y poesía europea, 56) da mulher,
incumbido pelo marido ou rival de observar os seus passos. A
personagem com a função de vigilante e que, por isso mesmo,
angustia os amantes, aparece igualmente nos poemas árabes
zejelescos, com o nome raqíb.
Na página 65 daquela obra, o autor refere que “Ribera
llamó la atención sobre el zéjel 141 de Aben Guzmán, que es
parodia de una albada, cantando con cierto humorismo la separación
de los amantes al amanecer, y en otro zéjel, el 82, la estrofa final
desliza un verso en romance, alba, alba, es de luz en una
die, sin duda estribillo de una albada mozárabe.”,
deduzindo-se daqui que a alba já era escrita na Andaluzia, não
sendo uma criação dos trovadores provençais, pois estes começaram
a escrever composições deste género mais tarde do que os poetas
andaluzes.
No entanto, a poesia andaluza também
terá sofrido influências, referindo Menéndez Pidal que “Aben
Bassam nos dice que Mucáddam cantaba en un árabe popular mezclado
de aljamía o romance mozárabe andaluz, y esta mezcla nos deja
suponer el influjo de una lírica popular de los cristianos de
Andalucía, por lo menos en cuanto al estribillo, elemento extraño a
la poesía árabe, y para el cual parece que Mucáddam inventó el
nombre de markaz,
al decir de Aben Bassám.” (op. cit., 70), acrescentando que
“Ribera cree que Mucáddam no se debió inspirar en una lírica
romance andaluza, sino en una lírica importada por los gallegos en
Andalucía.” (ibidem). Estes galegos, em número
considerável, terão integrado a população de várias regiões da
Hispânia, sendo respeitados “por su belleza física, por su
ingenio y habilidad” (op. cit., 71), tendo a poesia galega uma
enorme relevância, nesta altura: “La excepcional importância que
la lírica gallega tuvo en los siglos XIII e XIV hizo a Ribera
suponer que debió ya estar floreciente en la época primitiva.”
(ibidem) O tema mais tratado, nestas composições reduzidas, é o da
jovem que se lamenta da separação ou ausência do habib
(amigo), interpelando a mãe como forma de receber consolação para
a sua angústia.
Relativamente às cantigas de amor, há semelhanças na
conceção do próprio Amor, sendo o idealismo amoroso, na
literatura árabe oriental, tratado já desde o pré-islamismo.
Geralmente, crê-se que, nos poemas árabes, predomina um amor apenas
sensual, expresso numa explosão de sentidos. No entanto, como refere
Ramon Menéndez Pidal, na obra acima mencionada, “ El filósofo
cordobês Aben Házam en su Libro del Amor, escrito em 1022,
se inspira siempre en un idealismo erótico, que conviene en muchos
puntos con el amor trovadores” (59), surgindo o amante submetido à
amada, tema este que já era tratado dois séculos antes pelo califa
de Córdoba Al-Hákem I.
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Galega no harém |
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A submissão, a obediência e o servir por amor são
tópicos temáticos presentes nos poemas andaluzes e na literatura
árabe, em geral. A estes, acrescenta-se ainda a referência à
mulher, mas usando o masculino, o que também se verifica na lírica
trovadoresca provençal e, mais tarde, na galaico-portuguesa. Aben
Házam, para referir a mulher, usa os seguintes vocábulos, no
masculino: sayyidi, que significa “mi señor”, e mawláya,
isto é, “mi dueño”, usando os provençais a palavra midons.
O conceito poético do homem que se entrega ao Amor,
submetendo-se com humildade e resignação a uma mulher que não
reconhece a sua importância e dedicação, que sente comprazimento
nesse amor de que nada pode esperar e ainda assim o aceita, sendo um
Amor sem recompensa, não existe na literatura latina. No entanto,
surge muito na poesia árabe como, por exemplo, nos poemas zejelescos
de Aben Guzmán e num zejel de Aben Labbána de Denia, de antes de
1091, citado por Menéndez Pidal, na obra anteriormente referida:
“pero mi corazón, añade el amante, está lleno de dulzura hacia
aquella que me maltrata” (62).
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Página de um cancioneiro provençal do s. XIII da autoria de Arnaut Daniel
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Na poesia provençal, como sabemos, surge a mesma
submissão amorosa e o comprazimento no sofrimento amoroso e depois,
por imitação, na lírica galaico-portuguesa, culminando na morte
por amor.
(Ligação: A invenção do amor)
O zéjel é um trístico monórrimo com refrão e com
um quarto verso de rima igual em todas as estrofes, que se repete no
quarto verso de todas as estrofes da mesma composição poética, de
que Menéndez Pidal, em Poesia árabe e poesia europea
apresenta como exemplo a composição número cinquenta e um do
Cancioneiro de Baena, de Afonso Alvarez de Villasandino (17) e
que tem a mesma forma métrica e estrófica que o zéjel número
catorze, de Aben Guzmán.
Como menciona Maria Jesus Rubiera Mata, em “Jarchas
de Posible Origen Galaico-Portugues”, “la poesia estrófica
andalusí, moaxajas y zéjeles eran canciones,estaban musicadas”(
in Actas do IV Congresso da Associação hispânica de Literatura
medieval, vol. IV, 79).
As formas zejelescas da poesia hispano-arábica
encontram-se presentes na poesia trovadoresca dos primeiros
trovadores provençais, de que se destaca Guilherme da Aquitânia.
Nesta, encontram-se, de acordo com Julián Ribera e A. R. Nykl,
alguns assuntos relacionados, tal como na poesia árabe da época,
com a ideologia amorosa: a forma como o próprio Amor é encarado e
tratado e a idealização da Mulher, por exemplo.
No entanto, Rodrigues Lapa manifesta-se
contra essa influência, tendo procurado provar que, antes de Aben
Guzmán, o zéjel já era conhecido, usando, para tal, alguns
exemplos de estrofes com versos monórrimos, na poesia latina do
século XI. Na opinião de Menéndez Pidal, esses exemplos não são,
contudo, suficientes para provar que o zéjel é de origem latina,
uma vez que apresenta especificidades que não se encontram na poesia
latina.
Segundo o último autor mencionado, a poesia
galego-portuguesa não apresenta esta influência e as respetivas
composições, quanto à sua forma estrófica, não revelam, na
grande maioria, a mesma que a do zéjel (aaab) .
Há, no entanto, uma excepção: as cantigas do
Cancioneiro de Santa Maria, do rei Afonso X, cujas estrofes são
quase todas de trísticos zejelescos. Menéndez Pidal considerou-as
galaico-portuguesas pela língua, mas castelhanas, pela natureza,
com influência árabe na forma e tema religioso cristão.
Em relação à poesia provençal da primeira metade do
século XII, aquele autor encontrou a precedência da lírica árabe
peninsular, o que comprova que esta foi levada para o sul de França
e lá implantada. O mesmo adverte, aliás, para o facto de os
muçulmanos terem usado esta forma métrica muito antes dos cristãos,
salientando o poeta cordobês Aben Guzmán, que escreveu poesia entre
o fim do século XI e início do século XII e teve uma vida de
trovador errante, desde 1094, o que é bastante importante, pois
permite constatar uma das muitas possibilidades de contacto entre os
poetas de então, deslocando-se de reino em reino, o que permitia
difundir e trocar conhecimentos.
Este intercâmbio cultural é ilustrado, na obra Poesia
Árabe y Poesia Europea, numa iluminura que consta de Cantigas
de Santa Maria, na qual um jogral cristão toca alaúde com
outro, mouro, partilhando a mesma bebida, (Adalberto Alves, Arabesco,
Da música árabe e da música portuguesa), num intercâmbio
cultural ilustrativo do que acontecia, na realidade, na sociedade
hispânica medieval.
Para provar a origem árabe do zéjel, Menéndez Pidal,
em Poesia Árabe y Poesia europea (19) refere que,
segundo dois escritores muçulmanos, Aben Bassám, de Santarém,e
Aben Jaldún, de Tunis, o seu criador foi Mucáddam bem Muáfa el
Cabrí, o Cego, que viveu em Córdoba no fim do século IX e primeiro
quartel do século X. Segundo eles, a estrofe inventada por este
teria um markaz, ou seja, um refrão, em árabe popular e
romance falado por moçárabes cristãos, sendo então o zéjel o
resultado de duas culturas. A nível de conteúdo, apresentava dois
assuntos: o amor, na primeira parte e o elogio a alguém, na segunda
parte, sendo então esta forma a substituta da quasida árabe
clássica: “ Aben Jaldún nos dice que el zéjel vino a ser el
substituto vulgar de la casida árabe clásica” (op. cit., 20).
Segundo Aben Jaldún, refere Menéndez Pidal, na página
20, esta forma seria substituta da quasida árabe clássica, que
também apresentava estes dois temas e por esta ordem.
No entanto, segundo Menéndez Pidal, há aspetos que a
distanciam do mundo árabe: a divisão estrófica, o uso do
estribilho no fim de cada estrofe, o tema da separação dos amantes,
ao amanhecer, o facto de não serem tratados assuntos
caracteristicamente árabes e presentes na quasida, como as viagens
por regiões desertas, a vida nómada, o camelo...
O zéjel, tendo surgido na Península Ibérica, reflete
a mistura, a simbiose das culturas cristã e árabe, o que faz com
que esta forma seja tipicamente ibérica: há a referência a festas
e épocas do calendário latino, vozes e frases românicas andaluzes,
misturadas com o árabe, o que prova que a literatura é um espelho
da sociedade em que é produzida e de que árabes e cristãos não
viviam, afinal, num clima constante de inimizade como a História
oficial quis fazer fazer crer (D. Afonso X e D. Dinis tinham poetas e
músicos árabes nas suas cortes).
Mucáddam teve vários seguidores, pelo que o zéjel
perdurou, tendo sido o primeiro a usar esta forma o cordobês Aben
Abd-el-Rábbihi; no entanto, o mais conhecido é Aben Guzmán, por
ter deixado uma significativa colecção de zejéis (m.1160).
A poesia árabe-andaluza e a forma zejelesca aparecem,
pela primeira vez, na Europa, na obra do duque Guilherme IX, de
Aquitânia, que sabia árabe e era contemporâneo de Aben Guzmán e a
estrofe trística aparece também no início da lírica
galego-portuguesa, na qual se destaca Lope Díaz de Haro, senhor de
Vizcaya, o maior dignitário da corte de Afonso VIII desde 1206,
usando a língua da Galiza, onde se metrificava de acordo com a
estrofe andaluza.
A estrofe zejelesca não apresentava dificuldades de
interpretação, pois a língua usada era uma mistura de árabe com
romance, o que facilitava sua compreensão e assim, foi usada não só
na poesia de corte, como na de D. Dinis e do conde de Barcelos, como
também na popular, de que é exemplo a bailada Avelaneiras
frolidas, de Airas Nunes. Devido a este grande intercâmbio
cultural realizado com e através do zéjel, Menéndez Pidal, em
Poesia árabe y poesia europea, considera que ele é “más
expresivo aún que la conocida miniatura de las Cantigas de
Alfonso X, que representa um juglar moro y outro Cristiano
acompañandose el uno al outro en su canto.” (45), que Adalberto
Alves incluiu na sua obra Arabesco, Da música árabe e da música
portuguesa, como já foi referido.
Em relação à existência da estrofe zejelesca nas
poesias árabe e românica, é inegável a ligação entre elas,
sendo de destacar que a cultura árabe predominou entre os séculos X
e XIII e que os exemplos de composições arábico-andaluzes são
muito antigos. De acordo com a teoria arábico-andaluza, tal comprova que a poesia românica imitou a
árabe, mas há também que não esquecer que, no ano 900, Mucáddam
de Cabra escrevia poesia usando refrões com vozes moçárabes, pelo
que é provável que se baseasse numa canção românica andaluza,
que poderia ter-se desenvolvido ao mesmo tempo que a árabe e em
dialeto moçárabe, tal como em galego e provençal, por exemplo.
Em 1948, no trabalho “ Les vers finaux en espagnol
dans le muwassahs hispano-hebraiques”, S. M. Stern descobriu e
divulgou vinte poemas de poetas judeus da Península Ibérica da
primeira metade do século XI e do século XII, anteriores assim à
primeira lírica europeia em língua vulgar, a provençal.
Estes são poemas curtos, que formavam o último simt
ou qufl, uma espécie de refrão das muwassahat
ibérico-árabes ou hebraicas, pois esta forma poética é árabe,
mas pode aparecer quer em árabe culto quer em hebraico.
Inicialmente, pensou-se que as kharjas serviam de
conclusão às composições poéticas, mas depois percebeu-se que
eram autónomas em relação àquelas e escritas em moçárabe do sul
da Península, havendo, por vezes, quer o uso de romances quer termos
árabes peninsulares.
Os versos das kharjas encontram-se escritos na
variedade vulgar do árabe peninsular e apenas quatro estão escritos
em moçárabe, o dialeto usado no Andaluz, enquanto o resto da
composição poética apresenta a modalidade do árabe ou hebraico
eruditos ou literários.
Em 1952, Emílio García Gómez divulgou mais vinte e
quatro kharjas, inseridas em poemas árabes, datando a maioria das
que se encontram conservadas do período entre a primeira metade do
século XI e o século XII. No que respeita às árabes, as mais
antigas datam da altura dos reinos taifas, encontrando-se na produção
de Ibn ´Ubada e Ibn Al-Mu´allim, vizir do rei Al- Mu´tadid,de
Sevilha (1042-1069), pai de Al-Mu´tamid.
Quanto à enunciação, as muwassahat e as
kharjas distinguem-se. Nas primeiras, o sujeito de enunciação
é masculino, enquanto que, nas segundas, é feminino, expressando-se
uma donzela apaixonada, pelo que se aproximam das cantigas de amigo
da poesia galaico- portuguesa.
Geralmente, surgem em quadras, expressando aquela
donzela um lamento pela ausência do habibi ou amigo, havendo
também, por vezes, a interpelação à mãe, de forma a encontrar
consolo para o desespero amoroso. Estas duas figuras, a do amigo e da
mãe, surgem igualmente nas cantigas de amigo, podendo então ter
havido veios comunicantes entre o norte e o sul da Península Ibérica
e ocorrido uma influência mútua directa entre os poetas árabes e
cristãos.
Com a descoberta das kharjas, levantou-se a
hipótese da existência de uma tradição lírica românica, na
primeira metade do século XI, relacionada com a presença de
cristãos que, na Andaluzia, sob a plena influência árabe,
mantinham a sua língua e costumes e assim, a lírica provençal
deixaria de ser considerada a primeira literatura neo-latina em
língua vulgar e Guilherme de Aquitânia não seria o poeta mais
antigo da literatura europeia em língua vulgar. No entanto, não se
deve menosprezar o facto de mais de dois terços das kharjas conterem
arabismos, muitos deles na rima, havendo também cláusulas escritas
completamente em árabe vulgar, pelo que aquela posição, defendida
por Menéndez Pidal, não pode ser plenamente comprovada.
Por outro lado, R. Hitchcock defende, desde 1973, que o
elemento árabe, nas kharjas moçárabes, é muito maior do que se
tinha considerado, afirmando que se devia considerá-las escritas
“totalmente em árabe vulgar e não como textos romances, pelo que
as kharjas deixariam de ser o primeiro capítulo na história da
poesia europeia.” (Dicionário da literatura medieval
galego-portuguesa, 370). Além disso, nelas eram usadas versos de
poetas árabes, como, por exemplo, estribilhos de zejéis de Ibn
Quzman, que foram usados como kharjas em muwaxahas de poetas árabes
e hebraicos, que viveram depois dele.
Dois séculos antes dos autores galego-portugueses, já
poetas árabes tinham usado as kharjas, com características
comuns às cantigas de amigo da lírica galego-portuguesa, pelo que
aquelas poderão ser consideradas uma espécie de “cantigas de
amigo” árabe-andaluza.
Estes textos comprovam assim a existência de uma
sociedade trilingue, na qual se inseriam e conviviam árabes,
cristãos e judeus, refletindo um ambiente riquíssimo, a nível
social e cultural, no território peninsular ibérico.
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