Apesar do tempo passado, ficaram certas personagens na Galiza atual que considero têm caraterísticas próprias dos xamãs, ou pelo menos manejam os Estados Alterados de Consciência (em adiante EAC). Eis alguns exemplos:
Meigas: Tal e como afirma Josep M. Fericgla na sua obra “Los chamanismos a revisión”: “As meigas galegas não correspondem a única imagem do xamanismo proposto por M. Eliade, mas sem dúvida, trata-se duma forma de ação equivalente ao xamã ameríndio. Podemos considerar que as meigas constituíam uma manifestação do antigo xamanismo celta sobrevivente no SW europeu ate épocas muito recentes: emprego dos enteógenos; acesso por meio dos EAC aos espíritos que moram nos mundos alternativos; aplicação médica das suas ações; luta pelo enigmático poder que possuem os feiticeiros; função adaptógena projetada na sociedade...”
Em relação aos preparados das meigas, está muito difundida a crença de que empregavam o sapo nos seus unguentos. Algumas espécies do género Bufo contêm Bufotenine, uma substância enteógena semelhante ao DMT da aiauasca. Apanha-se na queima de cinco bruxas de Fago (Aragão) que “Tenian un sapo y lo azotaban con un brezo y cogían lo que le hacían echar y se untaban con ello y iban a donde querian”. Deste jeito tiravam a secreção tóxica que o sapo emprega para se defender dos predadores provocando irritação. Esta secreção contém a bufotenina que se untaria nas vassoiras que as meigas empregariam para se esfregarem. Depois o efeito enteógeno produziria a conhecida visão de voo, as transformações em animais, aparição do diabo, etc...
Pastequeiros: O pastequeiro é um estranho personagem das freguesias de Santa Comba e São Cibrão cuja função é curar o meigalho. O curioso dos santos de ditas freguesias, sempre presentes nas curações é que antes do que santos foram bruxos. O pastequeiro toma as orações da missa e estas são empregues no ato de curação junto com textos mágicos. O doente terá que achegar três libras de pão e três netos de vinho, dando-lhe a sua parte (que tem proibido comer) às ânimas. Este curioso rito supõe um culto às ânimas dos devanceiros, tendo por objeto a estabilidade do nosso mundo com o Além, tal como fazem os xamãs nas suas comunidades. O ofício transmite-se de pais a filhos.
Espiritados ou corpos abertos: Em 1963, Vicente Risco afirmou sobre eles: “Chama-se corpo aberto ao daquela pessoa viva no qual se introduzia ou pode-se introduzir um espírito estranho, ou aquele no qual falam as almas dos defuntos, bem porque elas querem, bem forçados pelos exorcismos ou obedecendo os conjuros dos bruxos. Trata-se duma sorte de possessão temporal (e ainda momentânea) ou permanente, do corpo dum vivo pela ânima dum defunto, ou por um espírito doutra classe mas que não se confunde com a possessão diabólica”.
Temos de novo a intercessão do xamã entre o nosso mundo e o Além. Muitos xamãs ao longo do mundo afirmam que em ocasiões são possuídos por espíritos que falam a través deles, voluntária ou involuntariamente. Também se pode dar que qualquer pessoa duma sociedade xamánica seja possuída por um espírito, tendo que ser sanada e libertada do seu possessor. Na Galiza atual pensa-se que os espiritados vem-se afetados pela ânimas por causa da sua debilidade. No caso galego, serão os curas os que têm a encomenda de libertar o possuído do seu pesar por meio do exorcismo. Mais recente pode ser o facto de que os espiritados, em lugar de se crerem afetados por um espírito dizem ser possuídos pelo demo. Acho que dito fenómeno deve-se a um EAC quer espontâneo quer produzido pelo jejum, ao que se submetem aquelas pessoas doentes e encamadas. É muito conhecido o Santuário da Virgem do Corpinho em relação aos exorcismo que lá se realizam.
Vedoiros: Batizados com o óleo dos mortos por equivocação, os vedoiros podem ver as ânimas, assim como o lugar que ocupam no Além. Aliás dão notícias de cousas perdidas, de tesouros ocultos e têm também a capacidade de avisar quem vai morrer. O vedoiro é de novo um personagem que como o xamã tem estas capacidades empregando o seu poder “sobrenatural”
Sábias e sábios: São bem-feitores que por dom, tradição ou qualquer tipo de aprendizagem chegaram a esta “categoria”. O seu labor é curar doenças mas também têm a capacidade de ver o futuro e adivinhar cousas relativas a quem estão longe. O seu método de cura é mágico ou mágico-religioso. Por meio de pedras, amuletos ou ervas pode curar o mal de olho, tirar os demos do corpo, os ares (maus os ruins), etc... Temos novamente paralelismos com os xamãs bem-feitores shuar, os iwishin, tsutákratim que eliminam as tsentsak (lanças mágicas dos xamãs malfeitores ou wawékratim) por meio da sua aspiração. Em qualquer caso é comum a luta de xamãs bem-feitores contra os malfeitores, assim como a curação por parte dos primeiros, das pessoas afetadas pelos segundos. Foi famoso o caso da Sábia de Torbeu que entrava em transe extático e punha-se a ladrar como um cão. Seguidamente passava a atinar tudo o que se lhe perguntava.
Sábias e sábios: São bem-feitores que por dom, tradição ou qualquer tipo de aprendizagem chegaram a esta “categoria”. O seu labor é curar doenças mas também têm a capacidade de ver o futuro e adivinhar cousas relativas a quem estão longe. O seu método de cura é mágico ou mágico-religioso. Por meio de pedras, amuletos ou ervas pode curar o mal de olho, tirar os demos do corpo, os ares (maus os ruins), etc... Temos novamente paralelismos com os xamãs bem-feitores shuar, os iwishin, tsutákratim que eliminam as tsentsak (lanças mágicas dos xamãs malfeitores ou wawékratim) por meio da sua aspiração. Em qualquer caso é comum a luta de xamãs bem-feitores contra os malfeitores, assim como a curação por parte dos primeiros, das pessoas afetadas pelos segundos. Foi famoso o caso da Sábia de Torbeu que entrava em transe extático e punha-se a ladrar como um cão. Seguidamente passava a atinar tudo o que se lhe perguntava.
Mencinheiros e curandeiros: Costumam empregar plantas para curar as doenças. Temos que diferenciar desta categoria aos compoedores já que a sua especialidade são os ossos. Cumpre salientar o caso recolhido por Tomé Martinez na sua “Galicia Secreta”, dum mencinheiro. Este empregava faz poucos anos a Amanita Muscária para entrar em transe. Provavelmente, este fungo era empregado em tempos recentes por mais mencinheiros do País. A Amanita Muscária é um fungo que tem fortes efeitos enteógenos, desde provocar a visão dos fosfenos até ter a sensação de estar a voar. A Amanita Muscária foi empregue pelos xamãs siberianos e inclusivamente o antropólogo Josep M. Fericgla fala do seu consumo até épocas recentes em Catalunha. O emprego deste enteógeno, pelo mencinheiro pode ser interpretado como um método de curação já que os xamãs denominam muitas vezes os enteógenos como medicinas, como é o caso do Peiote na igreja nativa Americana. Este fungo recebe a denominação em Galiza e nalguns casos como “o pão do demo”, nome que pode ser revelador já que os aztecas tinham um sacramento enteógeno denominado Teonanácatl (pão dos deuses, literalmente). Trata-se, tal e como se descobriu o século passado do fungo enteógeno Psylocibe Cubensis. Isto pode nos levar à possibilidade de pensar que a Amanita Muscária quiçá fosse antes da chegada do cristianismo um “pão de deuses” para depois se reconverter em “pão do demo”. Quando os cristãos chegaram a América consideraram os enteógenos como substâncias demoníacas. Mesmo existe um caso na Galiza dos anos 90 dum cura que proibia aos seus fregueses ingerir qualquer tipo de fungo sob pena de excomunhão, não sabemos se por conhecimento dos seus efeitos enteógenos ou por pura micofobia.
MITOLOGIA
A Mourindade: A voz latina “MAURUS” procede segundo o filólogo Isidro Millán do celta “MRWOS”. Os “Mouros” procedem portanto dum termo que designa os mortos. A pesar disto, temos que ter em conta que os “mouros” são na mitologia galega um “povo mágico”. Este povo tem um habitat subterrâneo, ocupando as profundidades dos megalitos, castros e covas. Os “mouros” são gente possuidora de grandes tesouros, poderes sobrenaturais e abundantes recursos de subsistência. Em algumas ocasiões podem ser benéficos e em outras maléficos no que diz respeito aos homens mas isto vai depender dos desígnios que o homem ou a mulher ocultem, assim como da moral que apresentem. Podem partilhar importantes tesouros com os homens sempre que estes não sejam avarentos e cumpram o que o mouro lhes diz, pois se for o contrário pode haver um desenlace pouco desejável. No mundo da mourindade o tempo é distinto do nosso. Uns minutos na terra dos mouros pode supor anos no mundo superior do homem.
Penso, portanto, que a mourindade se corresponde com o mundo inferior segundo a estratificação em três níveis que costumam fazer os xamãs. No seu caso, a viagem ao mundo inferior está relacionada com uma viagem ao Além, à terra dos mortos. E se os “mouros” são os “mrwos” celtas, são portanto os mortos da nossa mitologia que ocupam o “inframundo”. Como apontamos no capítulo anterior, os EAC propiciam uma conexão com o inconsciente. Portanto os seres que apareçam podem perceber facilmente os desígnios verdadeiros da pessoa, a sua moral que se monstra tal qual é. Talvez seja por isso que é necessário fazer alarde duma moral adequada para se beneficiar dos tesouros dos “mouros”. Uma vez que se acede ao seu mundo produz-se uma alteração temporal e o mesmo fenómeno produz-se por meio da experiência dum EAC no que o sujeito percebe uma modificação do espaço-tempo. Durante este transe extático, o xamã, costuma atravessar o túnel que o desloca ao mundo inferior. O seu reflexo no mundo material seriam as covas e os dólmenes (esqueuomorfos). Uma vez se chega ao mundo inferior da mourindade, poder-se-á aceder aos tesouros que oculta se os “mouros” são benévolos. Poderes sobrenaturais, visão dum mundo maravilhoso...novamente nos lembra a uma experiência de transe extático. Se a viagem foi sucedida, aquele que se adentre neste mundo poderá voltar com os seus tesouros, aqueles que se acham nas profundidades da mente humana
Há que mencionar aparte a “velha moura” (a do arco-da-velha, a que peneira), as mouras das fontes... já que se pode tratar de reminiscências de deidades pagãs.
Lobisomens: Na nossa mitologia existem uma série de pautas que supõem que uma pessoa se possa converter em lobisomem. Muitas vezes a transformação vem dada após a maldição proveniente de algum dos progenitores mas também se produz por ser o sétimo ou nono irmão do mesmo género, por meigalho ou por ter nascido na noite de Natal ou na sexta-feira santa. Em alguns casos, aquele que se converta em lobisomem pode possuir uma pelica de lobo, sendo lobo quando a põe e humano quanto a tira.
Lobisomens: Na nossa mitologia existem uma série de pautas que supõem que uma pessoa se possa converter em lobisomem. Muitas vezes a transformação vem dada após a maldição proveniente de algum dos progenitores mas também se produz por ser o sétimo ou nono irmão do mesmo género, por meigalho ou por ter nascido na noite de Natal ou na sexta-feira santa. Em alguns casos, aquele que se converta em lobisomem pode possuir uma pelica de lobo, sendo lobo quando a põe e humano quanto a tira.
Os guerreiros e xamãs de alguns dos antigos povos indoeuropeus acreditavam que tinham a faculdade de se converterem em lobisomens após realizar algum tipo de ritual. Entre os povos celtas, também se dava este facto entre os guerreiros que após a sua transformação desencadeavam uma fúria sobre-humana. A representação conserva-se na coleção da Real Academia espanhola da História.
Cumpre salientar o caso dos guerreiros Berserker, guerreiros viquingues que combatiam com uma pelica de lobo. Afirma-se que provavelmente os Berserker consumissem Amanita Muscaria para desencadear a transformação em lobisomens. Estes guerreiros viquingues semearam de terror lá onde apareciam e mesmo entre companheiros eram temidos. Alguns mesmo chegavam a afogar por se deitarem à agua desde os seus “drakkars” antes do desembarque com o desejo de entrarem em batalha quanto antes.
A figura do xamã também é objeto de transformação. Se nos retrotraímos ao anterior capítulo vemos como o “bruxo” de “Les Trois Frères”, esse ser teriantrópico parece estar coberto por uma pelica que é sinal da sua transformação. Os xamãs sudamericanos dizem se transformarem em jaguar (lá onde os há). A transformação pode vir dada após se vestirem com a pelica deste animal. Se lembramos uma das condições para a transformação que reflexa na nossa mitologia, vemos que se cumpre quando o protagonista se cobre com a pelica do lobo. Portanto, aquele que porte este destino, tanto pode apresentar corpo humano como de lobo uma vez vestida a pelica.
Portanto, estamos novamente perante um fenómeno relacionado com um EAC em relação às práticas xamánicas, mas também guerreiras..
A sociedade do osso: Diz-se que aquelas pessoas que compõem esta sociedade secreta podem viver tanto no mundo dos vivos como no mundos dos mortos. Trata-se de pessoas com práticas similares às da Santa Companha mas em lugar de fantasmas de mortos são “fantasmas de vivos”. Um termo acaído para descrever estas pessoas pode ser a de “corpos astrais”. Uma prática comum dos xamãs é a faculdade de realizar viagens astrais. Ditas experiências são semelhantes às extracorpóreas ou próximas à morte na que o sujeito se vê fora do seu corpo. Em algumas ocasiões os xamãs podem fazer encontros em espírito, quer dizer, podem percorrer os mundos do Além e/ou do Aquém, mesmo fazer encontros mas não com o seu corpo físico, mas com aquela parte do seu corpo que não é material.
Ânimas, Aparições e Santa Companha: Na perspetiva tradicional que temos os galegos do mundo, é frequente o avistamento das ânimas. Em algumas ocasiões trata-se de ânimas que pedem ajuda a um vivo para solucionar um problema não resolvido na terra. Em outras ocasiões podem informar de soluções ou precaver sobre assuntos terrenais como avisar do movimento indevido dos marcos duma finca ou outros assuntos da vida quotidiana. Com respeito à Santa Companha trata-se da comitiva que percorre certos caminhos e que pode capturar um vivo que terá de ir na frente da mesma enquanto não tope outro que o releve.
A comunicação com os devanceiros, a visão dos espíritos ou entres similares é comum no mundo duma sociedade xamánica. Talvez possamos explicar ditas visões em tempos recentes botando mão dos EAC mas em outras ocasiões pode-se dever a interpretações feitas de certos fenómenos naturais.
Foi esta uma pequena resenha do que o chamanismo e os EAC implicaram tanto no nosso passado como no nosso presente. Podemos ver que certos factos do passado, difíceis de compreender, talvez possam ser interpretados desde esta perspectiva. Certamente, tanto no passado como no presente, o espectro da mente humana sempre há de jogar um importante papel em relação a certas manifestações. Cumpre ter em conta, portanto, os EAC relacionados com as práticas religiosas, mágicas ou rituais do nosso passado celta. Partindo desta base podemos fazer uma análise interpretativa que nos permita um maior achegamento à visão que os nossos devanceiros tinham da vida.
Mas também não é necessário olhar para povos ou tempos muito afastados para achar o fenómeno xamánico. Os derradeiros curandeiros, mencinheiros e meigas são o eco desse passado longínquo que esmorece por causa da inexistência dum relevo geracional. A nossa mitologia é também a recordação dessas aventuras levadas a cabo nos mundos que compõem esta realidade misteriosa e desconhecida que de vez em quando aparece subitamente sem sabermos muito bem donde provém. Sejamos pois conscientes deste facto e dignifiquemos essa parte que semelha afastada da nossa globalizada vida. Não permitamos que o legado ancestral esmoreça. Não no-lo podemos permitir...