quarta-feira, 25 de junho de 2014

O que foi das jãs? (jã, antarujã, antarujaira, jaira, jarela, *jairo, -a)



Por Higino Martins Estêvez
Sabe-se que Diana deu o vulgar Jana, do que vêm muitas formas românicas. Nisso passou de grã deusa da natureza virgem e animais selvagens a “fada noturna” (Du Cange), “fada das fontes” (NO ibéri­co), “fada que fia de noite” (Algarve), etc. Um pouco por todas as partes cobrou valor de “bruxa”, na típica am­bi­valência dos fenómenos da psique profunda. Na Galiza algures che­­gou a confundir-se com a companha ou estantiga 1. O nome (não o mitologema) entrou aí na penumbra, subs­tituído por dona, senhora, moura, etc. O declínio de , de breve corpo, a par viu a con­fu­são com a companha, a favor do plural. 
As jãs foram a turba feérica, coro das ninfas ou pequenas fadas vege­tais, constelação de luzinhas vistas ou alucinadas na noite. A com­panha primitiva foi também uma turma de luzes aé­re­­as, à margem da interpretação consciente que das visões coleti­vas se fazia já no séc. XVII I 2. Ao cabo luzes na noite, quer terríveis, quer fas­ci­nantes. O que presta é dis­cer­nir os sentimentos que fizeram a passagem de “luzes das fa­das noturnas” a “luzes da hoste diabó­lica”, e depois “fan­tas­mas dos defuntos”. A história cultural aproveitará os dados, para cuja análise ainda não forjou o ins­tru­mento da psicologia pro­funda coletiva.
Fortuna diversa levam os derivados. Antarujã (e antarujaira) “bruxa” 3 junta a uma palavra enigmática que Coromines crê deturpação de untura, com oportunos apoios semânticos. A opacidade do primeiro membro fez altera­ções pareti­mo­ló­gicas, ao cabo tão caducas qual antarujã. Não é clara a composição e a figura que oculta: untura de jã?, jã de untura? Mais importa jaira, no composto antaru­jaira (antaruxaira no P. Sarm.), que isolada é “es­tan­­ti­ga noturna” (Sarm., CaG, 182r). É o lat.-vulg. *janaria (lat. dianāria), através de *jãaira (não de *jãeira, que dera *jeira. O jeira real é de diā­ria), qual chaira ou avelaira de planāria e abellānāria. O adjetivo é aí coletivo, e cumpre pôr (turma) dianāria. Voz e mito são antigos, mas no outro milénio não era “estantiga” mas “turma de Diana”, depois “turma feérica”. 
Dianāria podia modificar nomes não coletivos, como se deduz do jaira que chegou vivo: “mulher aloucada, coquete, garrida” (em Padrão, segundo Crespo Po­zo). A entender me-lhor o sentido deste jaira serve um seu derivado: jarela e jarelo, -a. Mais frequente que o posi­tivo, já aparece em F. X. Rodríguez, donde o toma Cuveiro Pi­nhol: “la mujer respondo-na, descarada y al­bo­ro­ta­dora”. Eládio R. Gonçález define xarelo “pessoa descarada, pou­co formal no falar, de pouco critério” e aclara dar-se mais amiúde às mulheres. Por fim, Isaac Estravis define jaira: 1º) diz-se da mulher que anda trás os homens, 2º) mulher des­ca­rada, atre­vida, 3º) borra­cheira, bebedeira (tomar uma jaira). Jarelo é em geral “pessoa que fala ou obra com desver­gonha”. É claro o nexo fóni­co de jarela com jaira. O diton­go átono re-duz-se. Em data românica in­corpo­ra-se a desinên­cia diminutiva com des­locar do tom. 
Interessa das palavras o perfil que surge da integração das várias definições. Docu­menta a no­ção pela qual a pessoa – nomeadamente uma mulher – parti­cipa da natureza do nume “Diana”. A pessoa pos­suí­da mostra-se “ligeira de casco; coque­te, garrida” e, na definição de jarelo, “sem vergonha”. Desenvolvida­mente, “que está isento da pegada moral judeu-cristã, parti­cu­lar­mente no que diz respeito à conduta sexual” ou “que está livre das ataduras da condição social comum”. Jairo, -a “feérico” é adjetivo bonito, digno de restaurar-se, mas é jaira e jarela o que cor­re com saibo a transgressão subterrânea, às tradi­ções pagãs do feminismo vegetal e resistente de sempre.


1 Sarmento, CaG, 163r: “Jâns, as jans. Dícese hacia Orense: fulano vio as jans, lo mismo que ver la compaña o hueste”.

2 A companha, hoste, estantiga, primeiro sem dúvida bando diabó­lico e aéreo de longa tradição, como acusam os próprios nomes, foi inter­pre­tada no contexto cristão recente como procissão de de­funtos. Mas a especu­lação cristã popular ocupava um lugar similar ao da racionalização ma­terialista posterior, e o fenómeno alucinatório era indepen-dente. Em The Bible in Spain de Borrow, temos testemunho tão importante ou mais do que os do P. Sarmento. O mais explícito é o do cap. 29, no que o guia lhe descreve a Borrow a Estadea e depois lha explica. Cumpre separar descri-ção de explicação. “Levantou-se uma névoa muito espessa. De pronto começaram a brilhar por riba de nós, entre a névoa, muitas luzes; havia ao menos mil. Ouviu-se um chio tremendo, e as mulheres caíram de bruços gri­tan­­do: Esta-dea! Estadea! Eu também caía e gritava: Estadinha! Estadinha!” A seguir o guia crê-se obrigado a explicar: “A Estadea são as almas dos mortos que andam por riba da névoa com luzes nas mãos.” A separação é clara e a meu ver a autenti-cidade da experiência alu­cinatória coletiva está assegurada por esse chio tremendo, característico de certas imagens arquetípicas aparentadas (V. o Wotan de C.G. Jung). Além da racionalização, a visão da cavalgada do bando aéreo diabólico em for­ma pura vê-se no testemunho do cap. 27, in fine: “De crermos aos galegos, os demos das nuvens per-segui­ram os ingleses na sua fuga e atacaram-nos com trovões e golpes de água quando pugnavam por remontar as re-viradas e empinadas vereias de Foncevadão.”


3 Sarm., CaG, 182r. “Antaruxá y antaruxairas. Creo llaman allí [Ourense] a las bruxas” Diz ser nome de Monte-rei.

1 comentário:

Drak Druk disse...

Maravilhosa postagem ! Muito obrigado ! Recebi por uma página do Facebook e agora já pus o blog nos meus favoritos tb !

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