Por Higino Martins Estêvez
Sabe-se
que Diana
deu o vulgar Jana,
do que vêm muitas formas românicas. Nisso passou de grã deusa da
natureza virgem e animais selvagens a “fada noturna” (Du Cange),
“fada das fontes”
(NO ibérico), “fada que fia de noite” (Algarve), etc. Um
pouco por todas as
partes cobrou valor de “bruxa”, na típica ambivalência
dos fenómenos da psique profunda. Na
Galiza algures chegou a confundir-se com a companha
ou estantiga 1.
O nome (não o
mitologema) entrou aí na penumbra, substituído por dona,
senhora,
moura,
etc. O declínio de jã,
de breve corpo, a par viu a confusão com a companha,
a favor do plural.
As jãs
foram a turba feérica, coro das ninfas ou pequenas fadas vegetais,
constelação de luzinhas vistas ou
alucinadas na noite. A companha
primitiva foi também uma turma de luzes aéreas, à
margem da interpretação
consciente que das visões coletivas se fazia já no séc.
XVII I 2.
Ao cabo
luzes na noite, quer terríveis, quer fascinantes. O que
presta é discernir os
sentimentos que fizeram
a passagem de “luzes das fadas noturnas” a “luzes da hoste
diabólica”, e
depois “fantasmas dos defuntos”. A história cultural
aproveitará os dados, para cuja análise ainda não forjou o
instrumento da psicologia profunda coletiva.
Fortuna
diversa levam os derivados. Antarujã (e
antarujaira)
“bruxa” 3
junta jã
a uma palavra enigmática que Coromines
crê deturpação de untura,
com oportunos apoios semânticos. A
opacidade do primeiro membro fez alterações
paretimológicas, ao cabo tão caducas qual antarujã.
Não é clara a composição e a figura que oculta: untura
de jã?, jã
de untura?
Mais importa jaira,
no composto antarujaira
(antaruxaira
no P. Sarm.), que isolada é “estantiga
noturna” (Sarm., CaG, 182r). É o
lat.-vulg. *janaria
(lat. dianāria),
através de *jãaira
(não de *jãeira,
que dera *jeira.
O jeira
real é de diāria),
qual chaira
ou avelaira
de planāria e
abellānāria.
O adjetivo é aí coletivo, e cumpre pôr (turma)
dianāria.
Voz e mito são antigos,
mas no outro milénio não era “estantiga” mas “turma de
Diana”, depois “turma feérica”.
Dianāria
podia modificar nomes não coletivos, como se deduz do jaira
que chegou vivo: “mulher aloucada, coquete, garrida” (em Padrão,
segundo Crespo Pozo). A entender me-lhor o sentido deste jaira
serve um seu derivado: jarela
e jarelo,
-a. Mais
frequente que o positivo, já aparece
em F. X. Rodríguez, donde o toma Cuveiro Pinhol: “la mujer
respondo-na, descarada y alborotadora”. Eládio
R. Gonçález define xarelo
“pessoa descarada, pouco formal no falar, de pouco critério”
e aclara dar-se mais amiúde às mulheres. Por fim, Isaac Estravis
define jaira:
1º) diz-se da mulher que anda trás os homens, 2º) mulher
descarada, atrevida, 3º) borracheira, bebedeira
(tomar uma jaira).
Jarelo é
em geral “pessoa que fala ou obra com
desvergonha”. É claro o nexo fónico de jarela
com jaira.
O ditongo átono re-duz-se. Em data
românica incorpora-se a desinência diminutiva com
deslocar do tom.
Interessa das palavras o
perfil que surge da integração das várias definições. Documenta
a noção pela qual a pessoa –
nomeadamente uma mulher –
participa da natureza do nume “Diana”. A pessoa possuída
mostra-se “ligeira de casco; coquete, garrida” e, na
definição de jarelo, “sem vergonha”. Desenvolvidamente,
“que está isento da pegada moral judeu-cristã, particularmente
no que diz respeito à conduta sexual” ou “que está livre das
ataduras da condição social comum”. Jairo, -a
“feérico” é adjetivo bonito, digno de restaurar-se, mas é
jaira e jarela o que corre com saibo a
transgressão subterrânea, às tradições pagãs do feminismo
vegetal e resistente de sempre.
1
Sarmento,
CaG, 163r: “Jâns,
as
jans.
Dícese
hacia Orense: fulano vio as
jans,
lo mismo que ver la compaña
o hueste”.
2
A
companha,
hoste,
estantiga,
primeiro sem dúvida bando diabólico e aéreo de longa
tradição, como acusam os
próprios
nomes, foi interpretada no contexto cristão recente
como procissão de defuntos. Mas a especulação cristã
popular ocupava um lugar similar ao da racionalização
materialista posterior, e o fenómeno alucinatório era
indepen-dente. Em The
Bible in Spain
de Borrow, temos testemunho tão importante ou mais do que os do P.
Sarmento. O mais explícito é o do cap. 29, no que o guia lhe
descreve a Borrow a Estadea
e depois lha explica. Cumpre separar descri-ção
de explicação. “Levantou-se uma névoa muito espessa. De pronto
começaram a brilhar por
riba de nós,
entre a
névoa, muitas luzes; havia ao menos mil. Ouviu-se um chio tremendo,
e as mulheres caíram de bruços gritando: Esta-dea!
Estadea! Eu
também caía e gritava: Estadinha!
Estadinha!” A
seguir o guia crê-se obrigado a explicar: “A
Estadea
são as almas dos mortos que andam por riba da névoa com luzes nas
mãos.” A separação é clara e a meu ver a autenti-cidade da
experiência alucinatória coletiva
está assegurada por esse chio
tremendo,
característico de certas imagens arquetípicas
aparentadas (V. o Wotan
de C.G. Jung). Além da racionalização, a visão da cavalgada do
bando aéreo
diabólico em forma pura vê-se no testemunho do cap. 27, in
fine:
“De crermos aos galegos, os demos
das nuvens
per-seguiram os ingleses na sua fuga e atacaram-nos com trovões
e golpes de água quando pugnavam por remontar as re-viradas e
empinadas vereias de Foncevadão.”
3
Sarm.,
CaG, 182r. “Antaruxá
y
antaruxairas.
Creo llaman allí [Ourense] a las bruxas”
Diz ser nome de Monte-rei.
1 comentário:
Maravilhosa postagem ! Muito obrigado ! Recebi por uma página do Facebook e agora já pus o blog nos meus favoritos tb !
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