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quarta-feira, 25 de junho de 2014

O que foi das jãs? (jã, antarujã, antarujaira, jaira, jarela, *jairo, -a)



Por Higino Martins Estêvez
Sabe-se que Diana deu o vulgar Jana, do que vêm muitas formas românicas. Nisso passou de grã deusa da natureza virgem e animais selvagens a “fada noturna” (Du Cange), “fada das fontes” (NO ibéri­co), “fada que fia de noite” (Algarve), etc. Um pouco por todas as partes cobrou valor de “bruxa”, na típica am­bi­valência dos fenómenos da psique profunda. Na Galiza algures che­­gou a confundir-se com a companha ou estantiga 1. O nome (não o mitologema) entrou aí na penumbra, subs­tituído por dona, senhora, moura, etc. O declínio de , de breve corpo, a par viu a con­fu­são com a companha, a favor do plural. 
As jãs foram a turba feérica, coro das ninfas ou pequenas fadas vege­tais, constelação de luzinhas vistas ou alucinadas na noite. A com­panha primitiva foi também uma turma de luzes aé­re­­as, à margem da interpretação consciente que das visões coleti­vas se fazia já no séc. XVII I 2. Ao cabo luzes na noite, quer terríveis, quer fas­ci­nantes. O que presta é dis­cer­nir os sentimentos que fizeram a passagem de “luzes das fa­das noturnas” a “luzes da hoste diabó­lica”, e depois “fan­tas­mas dos defuntos”. A história cultural aproveitará os dados, para cuja análise ainda não forjou o ins­tru­mento da psicologia pro­funda coletiva.
Fortuna diversa levam os derivados. Antarujã (e antarujaira) “bruxa” 3 junta a uma palavra enigmática que Coromines crê deturpação de untura, com oportunos apoios semânticos. A opacidade do primeiro membro fez altera­ções pareti­mo­ló­gicas, ao cabo tão caducas qual antarujã. Não é clara a composição e a figura que oculta: untura de jã?, jã de untura? Mais importa jaira, no composto antaru­jaira (antaruxaira no P. Sarm.), que isolada é “es­tan­­ti­ga noturna” (Sarm., CaG, 182r). É o lat.-vulg. *janaria (lat. dianāria), através de *jãaira (não de *jãeira, que dera *jeira. O jeira real é de diā­ria), qual chaira ou avelaira de planāria e abellānāria. O adjetivo é aí coletivo, e cumpre pôr (turma) dianāria. Voz e mito são antigos, mas no outro milénio não era “estantiga” mas “turma de Diana”, depois “turma feérica”. 
Dianāria podia modificar nomes não coletivos, como se deduz do jaira que chegou vivo: “mulher aloucada, coquete, garrida” (em Padrão, segundo Crespo Po­zo). A entender me-lhor o sentido deste jaira serve um seu derivado: jarela e jarelo, -a. Mais frequente que o posi­tivo, já aparece em F. X. Rodríguez, donde o toma Cuveiro Pi­nhol: “la mujer respondo-na, descarada y al­bo­ro­ta­dora”. Eládio R. Gonçález define xarelo “pessoa descarada, pou­co formal no falar, de pouco critério” e aclara dar-se mais amiúde às mulheres. Por fim, Isaac Estravis define jaira: 1º) diz-se da mulher que anda trás os homens, 2º) mulher des­ca­rada, atre­vida, 3º) borra­cheira, bebedeira (tomar uma jaira). Jarelo é em geral “pessoa que fala ou obra com desver­gonha”. É claro o nexo fóni­co de jarela com jaira. O diton­go átono re-duz-se. Em data românica in­corpo­ra-se a desinên­cia diminutiva com des­locar do tom. 
Interessa das palavras o perfil que surge da integração das várias definições. Docu­menta a no­ção pela qual a pessoa – nomeadamente uma mulher – parti­cipa da natureza do nume “Diana”. A pessoa pos­suí­da mostra-se “ligeira de casco; coque­te, garrida” e, na definição de jarelo, “sem vergonha”. Desenvolvida­mente, “que está isento da pegada moral judeu-cristã, parti­cu­lar­mente no que diz respeito à conduta sexual” ou “que está livre das ataduras da condição social comum”. Jairo, -a “feérico” é adjetivo bonito, digno de restaurar-se, mas é jaira e jarela o que cor­re com saibo a transgressão subterrânea, às tradi­ções pagãs do feminismo vegetal e resistente de sempre.


1 Sarmento, CaG, 163r: “Jâns, as jans. Dícese hacia Orense: fulano vio as jans, lo mismo que ver la compaña o hueste”.

2 A companha, hoste, estantiga, primeiro sem dúvida bando diabó­lico e aéreo de longa tradição, como acusam os próprios nomes, foi inter­pre­tada no contexto cristão recente como procissão de de­funtos. Mas a especu­lação cristã popular ocupava um lugar similar ao da racionalização ma­terialista posterior, e o fenómeno alucinatório era indepen-dente. Em The Bible in Spain de Borrow, temos testemunho tão importante ou mais do que os do P. Sarmento. O mais explícito é o do cap. 29, no que o guia lhe descreve a Borrow a Estadea e depois lha explica. Cumpre separar descri-ção de explicação. “Levantou-se uma névoa muito espessa. De pronto começaram a brilhar por riba de nós, entre a névoa, muitas luzes; havia ao menos mil. Ouviu-se um chio tremendo, e as mulheres caíram de bruços gri­tan­­do: Esta-dea! Estadea! Eu também caía e gritava: Estadinha! Estadinha!” A seguir o guia crê-se obrigado a explicar: “A Estadea são as almas dos mortos que andam por riba da névoa com luzes nas mãos.” A separação é clara e a meu ver a autenti-cidade da experiência alu­cinatória coletiva está assegurada por esse chio tremendo, característico de certas imagens arquetípicas aparentadas (V. o Wotan de C.G. Jung). Além da racionalização, a visão da cavalgada do bando aéreo diabólico em for­ma pura vê-se no testemunho do cap. 27, in fine: “De crermos aos galegos, os demos das nuvens per-segui­ram os ingleses na sua fuga e atacaram-nos com trovões e golpes de água quando pugnavam por remontar as re-viradas e empinadas vereias de Foncevadão.”


3 Sarm., CaG, 182r. “Antaruxá y antaruxairas. Creo llaman allí [Ourense] a las bruxas” Diz ser nome de Monte-rei.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sobrevivência da roda das festividades pagãs na Galiza (2ª Parte)



Por José Manuel Barbosa  

 4. O Equinócio de Primavera



Segundo a mitologia celta, o Ostara é o seguinte passo dos oito no que se representa a energia em constante mudança da natureza. É a festa do começo da primavera.



A Quaresma é a etapa prévia e “interim” entre o Carnaval e a Páscoa. Esta última o ponto de inflexão no que a natureza dá flor e fruto. Em total são sete semanas de sete dias cada uma menos a primeira que tem cinco, pois os dous primeiros dias da primeira semana são a segunda-feira e a terça-feira de Entrudo. Estas sete semanas são, segundo a tradição galega sete irmãs cujos nomes são: Ana, Rabana, Rebeca, Susana.....ainda que aqui a informação que recolhemos nos leva a dous nomes masculinos na quinta e sexta "irmã"...Lázaro e Ramos... A última irmã é a Páscoa. O cristianismo fez o seu trabalho...



De entre essas irmãs, a primeira é coxa. Essa eiva faz-nos lembrar a lenda da Ana Manana da mitologia ourensana (4). A quarta e a quinta representam dous nomes masculinos embora sejam “irmãs”. Talvez a figura de Lázaro (amigo de Jesus de Nazaré...) nos possa dar uma pista pensando que ele tinha duas irmãs: Marta e Maria. Esta última é a Maria de Betânia que segundo alguns textos apócrifos se corresponde com a Maria de Magdala, ou a Madalena.... A figura das sete irmãs é uma constante mitológica europeia e nomeadamente céltica que as identifica com as Plêiadas mas também com as lendas galegas da galinha com os sete pintinhos.


Essa quinta semana após o Entrudo e duas antes do domingo de ressurreição, a do São Lázaro é uma festa grande em Ourense. O ritual tradicional leva à queima dos “madamitos”, duas figuras de cartão ou papel atados a uma roda igualmente combustível que representa a roda da vida com o ritmo acelerado das estações. Representam a renovação da natureza e a entrada da primavera. Não é casual que o 25 de Março seja o dia da anunciação, dia no que o arcanjo Gabriel diz a Maria, mãe de Jesus, que ela vai ficar grávida do Espírito Santo. É o anuncio do nascimento de Jesus nove meses antes de este acontecer o 25 de Dezembro.



A Semana Santa é a parte final do Ostara no que o objetivo é a renovação da natureza. A morte e a ressurreição.



Quando chegou o cristianismo a Europa, este adoptou as datas do Ostara como o nome de Páscoa nos países católicos relacionando igualmente essa tradição regeneradora da natureza com a figura de Jesus de Nazaré. Conta-nos André Pena (Pena Granha: 1991) que os nossos antepassados celtas acreditavam no mito de Esus, deus com caraterísticas solares que com o seu machado cortou o madeiro da Árvore da Vida (o Hy-Brasil ou Yggdrasyl) no que sofreria o seu próprio tormento voluntário e posterior morte, sendo alanceado no coração com o fim de fazer prosperar a terra e fazer com que a vida florescesse ao ressuscitar e se proclamar rei, retornando ao mundo dos vivos proveniente do Além como vencedor da morte.



Não há que fazer muito esforço para reconhecer nessa lenda céltica ao Jesus cristão, numa morte igualmente voluntária em forma e fundo e um renascer se calhar com mais força da figura solar em questão.


5. Os Maios 

O começo do verão para os celtas é o 1 de maio, data do Beltane ou Beltaine (o bom lume). Nesta data é quando a estação muda para dar passo ao tempo do calor, da luz, das atividades exteriores. Quando os nossos antepassados celebravam a presença do fruto da terra, da limpeza e da purificação da mesma com fogueiras nos outeiros. Para os celtas, segundo alguns autores (Pena Granha 1991: 384), o lume é um agente de limpeza (Cf. Green, M 1999, 1995:52), daí o “Ignis/Agnis dei tollis pecata mundi” que faz do fogo um elemento dador de vida, de saúde, purificador e regenerador.



O costume era acender uns fachicos de lume e passeá-los durante a noite pelos campos de cereal para purificar as colheitas e livrar-se das parasitas.



Em muitos lugares da Europa existe a tradição da árvore de maio que consiste em chantar uma árvore no meio da vila adornada de motivos vegetais e alimentos. Na Galiza igualmente se adorna de flores, bolos, roscas, chouriços e outros elementos naturais e alimentícios. Isto acontecia até há pouco tempo em alguns lugares da região de Ourense como nas Comarcas da Quarquérnia ou Baixa Lima e a do Tâmega ou Monte Rei-Verim. Pendurava-se igualmente um homem de palha ao que chamavam “Maio” e ali ficava todo o mês. Ao final queimava-se.



No filme “The mists of Avalon” podemos comprovar como era o ritual do Beltaine. Uma festa de fertilidade da terra e também dos humanos nos que entre os membros da comunidade se escolhiam um rapaz e uma rapariga jovens aos quais se lhe propiciava um encontro sexual para favorecer a prosperidade da comunidade. Deles dependia a felicidade do povo que por meio desse ritual mágico pedia à terra fartura para os seus. Nas últimas décadas e após quase séculos de cristianismo, a ritualização não era assim mas sim é que se escolhiam um rapaz ou uma rapariga aos que se cobria de flores ou motivos vegetais. 

No entanto, podemos achar um par, rapaz e rapariga em Laça, Comarca do Tâmega-Verim numa festividade celebrada o dia 3 de maio e a quem se lhes dava o nome de Adão e Eva. O ritual não era propiciar, evidentemente um encontro sexual, embora descubramos uma similitude com a feição originária. O nascer aos sentidos, ao mundo da fecundidade é evidente, como também o é o costume de os moços porem giestas ou codessos nas portas das casas das raparigas com uma intencionalidade amorosa e portanto procriadora.



Na capital da Região ourensana existe ainda em pleno século XXI a tradição da construção do Maio, uma figura de madeira, de forma cónica ou piramidal coberta de musgo e carraboujos (5) que representam igualmente o florescer da natureza e talvez memória da árvore de maio espalhada por toda a Europa. Após concorrência entre elas acabam sendo queimadas no ritual de lume típico destas datas. É muito típico também cantar as Coplas dos Maios, versos satíricos e mesmo de Maldizer que criticam a vida política local. Existe memória, seguindo um “modus operandi” similar a épocas Samânicas, de irem os jovens de porta em porta pedindo os “maios” ou “maiolas” que são castanhas secas ou nozes (VVAA: 1979). Igualmente se estas não se recebem como se aguarda, as coplas de crítica acabam aplicando-se como em outra festividades do ano.

 6. O Solstício de Verão

Corresponde-se no calendário cristão com as festas do São João, prévio Córpus Christi. Na festividade anterior ao solstício salientamos as figuras dos dragões, imagens míticas próprias da mitologia indo-europeia e céltica, que sobrevivem em algumas localidades galegas e portuguesas ligando estas datas juninas com um paganismo reconhecível. São a Coca de Ponte Areias e a Tarasca de Monção no Córpus Christi que a dia de hoje é festa local em Ourense transladada durante o século XX para este 10 de Junho proveniente do originário 16 de Agosto, dia de São Roque.


No que diz respeito do São João, em 24 de Junho e polar do Natal, temos a festa da luz, que traz consigo uma serie de tradições acrescentadas, como a da recolha de determinadas plantas que baseiam a sua utilidade em favor da saúde, da beleza e da juventude. Estas ervas são a Erva de São João, a Calêndula, a Arruda, o Alecrim, a Malva e outras que se deixam no exterior da casa durante a noite e que têm origens em épocas ancestrais em que a curação das pessoas dependia dos remédios que a natureza fornecia no seu máximo ponto de expansão e florescimento. As plantas medicinais seriam mergulhadas em água, seguindo a tradição, devendo se lavar a gente nessa mescla para favorecer o equilíbrio psico-físico e ainda a fertilidade.



As fogueiras são outro dos elementos desta época, dando-lhe ao lume mais uma vez a importância de elemento regenerador, fornecedor de pureza, de limpeza e de proteção contra os elementos nocivos que impedem a prosperidade da terra e dos seres humanos. O mal afasta-se dançando ao redor das labaredas e queimando velhos tarecos para proteger dos maus espíritos do passado e das más artes da bruxaria. O lume faz fugir os dragões ocultos nas entranhas da terra e a roda de São João ao redor das fogueiras representa o rodar do Sol pelo firmamento. De manhã quando o Sol faz a sua aparição no horizonte também dança marcando o seu ponto máximo de presença durante as horas do dia.



Quando a festa estão no seu ponto mais alto, a gente salta acima do lume três vezes para limpar-se a si próprios e também para limpar os seus animais que sendo levados pelos seus donos purificam os seus corpos para se livrarem de todo meigalho ou bruxedo que os possa fazer adoecer ou impedir o seu aproveitamento pelo ser humano.



Típica também é a queimada feita com aguardente, açúcar e pedaços de fruta, símil das beberagens que os antigos magos de antanho elaboravam para ritualizarem a sua magia, tão perseguida e condenada pela igreja no transcurso da história. Como contrapartida, a própria igreja usava também o fogo para se livrar dos malfadados bruxos em autos de fé nos que não só ardiam pessoas mas também interessantes conhecimentos e saber ancestral.



Estes rituais ainda conservados na atualidade sem muita variação foram cristianizados na honra da figura de São João, mas nunca perdendo o seu sentido de festa solsticial. A sua ancestralidade está fora de toda dúvida e do nosso ponto de vista não nos cabe dúvida da sua vinculação a festividades célticas pré-cristãs.


7. O Ciclo do Verão



É a celebrada nos começos de Agosto. Festa de Lugh, o deus Sol. Para os antigos celtas época de festas, tempo de trabalho agrário mas também de felicidade, começo da época da colheita, de maturação dos produtos agrícolas, de reuniões familiares, competições, feiras, época para legislar, para impartir justiça e sobre tudo de bodas. Na Galiza tradicional tem sido assim tradicionalmente.

Nas datas atuais do 25 de Julho celebra-se uma festa solar, a do São Tiago, figura cristã que veio substituir provavelmente à imagem do Lugh galaico. São datas que servem para honrar à terra, neste caso à Nossa Terra que em Ourense tem a sua manifestação nas festas da Ponte. Do mesmo jeito, o São Roque, festa histórica da cidade até o século XX, é datada em 16 de Agosto, dia seguinte dum 15 de agosto festivo em todas as localidades galegas no que se rende culto à terra. A velha Cailleach céltica, a mãe, a que dá sustento, a que protege aparece ao redor do antigo Lughnasad ou Lugunástada, a época das bodas de Lugh celebrada em 1 de Agosto, momento de agradecer aos espíritos, aos deuses e aos santos com oferendas e celebrações. A fartura e a prosperidade estão presentes porque a natureza, a terra, a velha Cailleach nos fornece dela.



Essa festa, conhecida e atendida por alguns seguidores atuais da religião primigénia, representa a abertura do Portal do Leão, que abre as portas da elevação espiritual, do crescimento, do progresso, do aparecimento de Sírio no céu do hemisfério Norte. A coerência das datas dá-nos para descobrirmos que a festividade correspondente de Novembro, o nosso Magusto, é a abertura do Portal do Além ou do Sidh, que datamos em 11 de Novembro do calendário gregoriano, mas no 1 de Novembro do calendário juliano. O 11 de Novembro atual e o 1 de Novembro anterior a 1582 estão no mesmo ponto do trânsito solar visto astronomicamente. Igualmente, podemos afirmar que o 11 de Agosto gregoriano, data em que podemos ver as chamadas lágrimas de São Lourenço se corresponde com o velho 1 de Agosto juliano. Tradicionalmente o Sol é denominado de Lourenço pela cultura popular galaica o que nos leva a deduzir que há um Lugh oculto detrás destas datas e deste nome. Evidenciamos portanto uma cristianização duma tradição céltica, ancestral e pagã.



8. A Colheita 


Não é um festival como os anteriormente relatados, percebido como uma grande manifestação festiva na que participam multidão de pessoas mas uma festa a celebrar em família. O nome com a que se a conhece ultimamente é o de Mabon embora esse nome não seja tradicional mas um neologismo criado pelo reconstrucionismo celta de épocas contemporâneas. É uma das festas pagãs mais antigas e comuns de toda a humanidade que no mundo celta se celebrava na lua cheia mais próxima ao equinócio de outono. Tem correlatos por todo o mundo e em diversas culturas e civilizações sendo a do mundo anglo-saxônico a que sobrevive com o nome de “Thaksgiving”.



Contava-nos há muitos anos o velho galeguista e quarquerno (6), antigo professor nosso no ensino secundário, o Professor Joaquim Lourenço “Xocas”, que na Idade Média os camponeses acreditavam na existência do espírito nos produtos agrícolas e nomeadamente nos cereais. Nestas datas após a colheita faziam um pequeno boneco com o último feixe de trigo ou centeio o qual teoricamente guardava o espírito do produto. Este boneco era levado à comida onde permanecia sentado ao lado de todos até o final da mesma, momento em que era guardado até o ano seguinte que era quando se queimava e se fazia um novo.



Estas crenças não eram muito queridas pela igreja, por isso não se mantiveram até a atualidade mas na memória de quem isto escreve está a festividade da vindima no Ourense dos anos 70 do século XX, época de festa familiar, de comida em conjunto entre todos os que festejávamos a recolhida da uva nos começos do outono. O vinho e a vindima foram desde há séculos motivo de festas na velha Áuria mas provavelmente antes de que o vinho estivesse presente nesta cidade, desde a que escrevemos, haveria celebrações relacionadas com a colheita correspondente e tradicional dos produtos que naquela altura eram os comuns. Talvez a maçã que se recolhe em datas outoniças para fazer aquela tradicional cidra que cedeu à pressão do vinho que a dia de hoje dá personalidade às terras de Ourense...???

Cidra tradicional e ecológica galega (Texto História da cidra em Galiza)

É esta a última celebração da roda das estações, a festa da Colheita, da recolhida dos frutos e da ação de graças à natureza pelos bens fornecidos pela terra para assegurar os futuros meses de inverno. Coincide com o começo do outono e o costume histórico de celebrar um jantar familiar para agradecer a fartura, abençoar a casa e arranjar aquelas cousas necessárias para se proteger no inverno. É época de preparação para a vida no interior da morada. O frio está próximo e o calor do fogar há de ser o lugar central ao redor do qual se vai desenvolver a vida familiar. O Sol decai e a roda fica preparada para começar de novo quando o ano acabe a final de Outubro. A lua cheia que dá passagem à abertura do Portal do Além marca o final do velho ano e o começo do ano novo. Feliz ano novo.

Sol de Outono (Luar na Lubre)



Comentários:



(4) A lenda da Ana Manana:

Lá em tempos remotos, um dos muitos galegos que iam à sega de Castela, ao vir de volta para a sua casa, achou no caminho um senhor muito bem vestido que lhe perguntou donde era. O segador respondeu-lhe que era de Ourense.

    • E diga-me, Sr., Vc sabe algo ou conhece onde está o Poço Meimão?
    • Se, sim Sr; sempre que vou a Ourense para pagar a renda ou levar alguma cousa para vender passo-lhe por ali. É um poço do Rio Minho...

Então o Sr entregou-lhe ao aldeão um queijo que tinha quatro cantos e disse-lhe:

    • O Sr quer ser rico?
    • Eu como querer, quero, sim; mas que hei de fazer para consegui-lo?
    • Pois, olha –disse-lhe o desconhecido-. Não tem que fazer mais do que ir ao Meimão e quando chegar lá ao lado duma pequena fonte que há entre umas penas, ao lado do caminho, grita: “Ana Manana! Ana Manana!”; e à terceira vez vai aparecer-se-lhe uma mulher muito formosa. Vc tem de lhe dar este queijo e ela é que lhe vai entregar um rico tesouro que tem lá escondido.

O labrego acariciou a cabeça pensando. Finalmente, olhando para o Sr, perguntou-lhe:

    • E não tenho de fazer mais cousa alguma?
    • Tem também que guardar o segredo sem dizer a ninguém a encomenda que leva, nem sequer à sua esposa. E deve ter muito cuidado com o queijo, porque hás de o entregar inteiro; porque se não, pode trazer uma desgraça.
    • Isso tudo não é muito difícil de fazer.
    • Pois tome o queijo e lembre bem o que acabamos de falar.

Entregou-lhe o queijo e ainda não o tinha apanhado o aldeão, quando o Sr que lho deu desapareceu sem saber como.

O bom do paisano continuou o seu caminho rumo da sua morada depois de guardar o queijo dentro dum lenço que atou pelos quatro cantos. Pensando com alegria na possibilidade de enriquecer-se com o que a dama poderia dar-lhe do seu tesouro do Meimão e um bocado preocupado porque o queijo não se estragasse ou por se pudesse achar no caminho alguém que lhe perguntasse que era aquilo que levava tão envolto sem saber que lhe dizer. Mas antes de se acercar ao Meimão, foi à sua casa para dizer-lhe à sua mulher que já tinha chegado de Castela e deixar o dinheiro que ganhou lá, na sega, pois não queria andar com ele guardado por aqueles lugares.

Mas muitas pessoas são muito curiosas, e a sua mulher no momento em que viu o pacote que levava o seu marido perguntou que era o que ele trazia.

    • É uma encomenda, uma cousa que tenho de entregar. Não vá ser o demo que lhe toques! –e subiu ao sobrado para guardar o dinheiro.

Mas a mulher aproveitou aquele momento para olhar que é o que havia no lenço. Quando viu que era um queijo, apanhou uma faca e cortou um anaco; um de aqueles cornichos que tinha pensando que ninguém acharia em falta aquilo.

O homem baixou do sobrado e colheu o queixo envolto no lenço sem pesar no que pôde ter feito a sua mulher. Saiu caminho do Meimão e apurou porque já demorava em cumprir a sua encomenda de receber o prémio do tesouro.

Ao chegar à fonte chamou três vezes: “Ana Manana! Ana Manana! Ana Manana!”

E sentiu um calafrio quando viu aparecer perto do si uma formosíssima mulher, coberta com uma linda vestimenta branca que parecia uma santa saída dum altar ou uma rainha com o rosto dum anjo.

    • Porque me chamas? –Perguntou-lhe de mal humor, como se não lhe agradasse que a tivesse feito sair da sua morada oculta.
    • É para lhe dar esta encomenda que um Senhor que não sei quem é me entregou para Vc. –disse o homem; e pus nas suas mãos o lenço com o queijo.

Ela abriu o lenço e ao ver o queijo com um cornicho comido disse encolerizada:

    • Que é que me trazes cá? Que fizeche? Não che disseram que não tocasses o queijo? Este era o cavalo que havia de me tirar de este encerro mas tu não cumpriche a tua encomenda como che disseram. Foche primeiro à tua morada e a tua mulher comeu uma pata. Que faço eu agora?

E, com efeito, pus o queijo no chão e imediatamente se converteu num magnífico cavalo branco com asas, mas sem uma pata.

    • Olha! Olha! –disse-lhe com irritação-. Agora tenho que ficar aqui para sempre entre estes penedos e tu pediche o tesouro que havia de dar-che. No entanto, pelo serviço que fizeche, toma este refaixo e põe-lho à tua mulher quando esteja para parir. Não posso dar-lhe outra cousa.

E desapareceu ela e o cavalo coxo sem que o pobre homem pudesse ver para onde se tinha ido.

O labrego desesperou-se cavilando no mal que a sua mulher tinha feito, tanto à Senhora como a eles mesmos. Bem merecia um bom enfado. Mas como estava na última parte da gravidez, tentou calmar-se pois não era cousa de se expor a um mal maior e bufando dirigiu-se para a sua morada com resignação; mas lembrando-se do refaixo, ocorreu-se-lhe envolvê-lo numa sobreira que por ali havia para ver como era. Ah! Pobre da sua mulher se o tivesse vestido! Ainda não lhe tinha dado a última volta quando a árvore e o refaixo arderam numa rápida e violenta labareda.

E desde aquela altura a fonte do Poço Meimão, no Rio Minho de Ourense é chamado “A Fonte de Ana Manana”.



(5) O carraboujo é o bugalho de carvalho, grande, redondo e com picos.



(6) Quarquerno é o nativo da Comarca da Querquérnia ou Baixa Lima



Bibliografia:




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