Por David Outeiro
Como podemos observar existe uma relação entre a chamada caçaria selvagem com a iniciação dos guerreiros e especialmente os caçadores. Esta ideia é a que refletem as narrações célticas da Irlanda e Gales, mas também certos petróglifos galegos e a pintura de Orca dos Juncães. O caldeiro de Gundestrup também reflete uma destas cenas. São todos eles uma série elementos que estão espargidos pela nossa geografia mítica, mas se fizermos uma analise holística poderemos ver é o fenómeno do que estamos a falar. Há elementos na Galiza que nos fazem pensar nessa ideia mas também na sua continuidade através dos tempos. São os jazigos da Paróquia de Oburiz, com a que dei graças ao Prof. André Pena Granha (1).
Na paróquia de Oburiz (Guitiriz) existe uma porta que tem mais de 3000 anos. Uma porta ao Além. Esta porta é uma gravura dum petróglifo da Idade do Bronze que é a representação mais antiga de Europa duma porta do "Hades". Ela só poderá ser trespassada por alguns, segundo o Prof. André Pena "...é o trânsito vertical ao submundo, reservado aos nobres e cavalheiros, por uma porta aberta numa rocha". Isto não é tudo, pois nos tempos da velha Kalláikia, nessa paróquia, dedicaram duas aras votivas aos Lares Viários, deuses psycopompos e dos caminhos.
Por se fosse pouco, também existe a representação duma tríade não muito clara. Com a chegada do cristianismo as crenças arredor dos deuses e as aparições dos caminhos, assim como o perigo das encruzilhadas, seguia vivo. É por isso que se começaram a pôr cruzeiros, nos que três deste lugar se dirigiam ao petróglifo, à porta do Além, que seriam deslocados para uma encruzilhada ao pé da igreja de Oburiz. Um dos cruzeiros desta igreja que chama a nossa atenção, apresenta dous laços e um galo sobre eles... Citando de novo ao Prof. André Pena: "Na cruz representam-se dous laços psychopompos para atar as almas como o cordão de San Francisco. O galo fez que se lhe equiparasse com o Mercúrio". São os mesmos laços que levam Bândua e Ogmios/Ogma, os mesmos laços que levam as Ânimas de cara o Além. Na paróquia rende-se-lhe culto a São Pedro, um santo que tem laços entre os seus atributos e que conta com as chaves do céu...é o herdeiro da velha ideia dos deuses psycopompos. É sabido que durante milhares de anos existiu uma continuidade em torno a uma ideia: a dos exércitos da noite e a da condução das Ânimas por deuses obscuros.
Os deuses obscuros perviveram, durante a noite percorrendo os caminhos como uma hoste guerreira. É uma mitológica comitiva que pode ir acompanhada por cães e que leva Ânimas encadeadas...como os guerreiros celtas remedando ao seu deus. A companha, a Estantiga, Antarujada, As da noite, A hoste...são aparições nocturnas que pertencem a mitologia galega atual. Sabemos já que vêm dum velho passado céltico, mas vamos ver como se nos apresentam hoje em dia.
A Santa Companha é um popular nome literário para a Companha, mas tradicionalmente não é esse o seu nome; é Companha, mas de Santa não tem nada. Pode que cada paróquia tenha a sua, uma procissão de mortos que segundo alguns afirmam está dirigida pelo morto mais antigo da paróquia; é quem chama aos demais mortos para se erguerem e começarem o seu caminho. Cheiro a cera, desacougo, medo, estranhos ruídos de cadeias delatam a chegada da aparição. Vão em duas fileiras e envoltas em sudários portam candeias ou ossos ardendo ainda que também podem portar uma cruz processional ou um caldeiro com agua benta. Será o caldeiro do renascimento?. No caso do portador da cruz é o único vivo que vai na comitiva, que por topar-se com ela foi condenado a tomar o relevo e acompanhar as Ânimas dos defuntos cada noite enquanto ele vai esmorecendo. Diz-se que se a paróquia é dum santo, o portador será varão, se é duma santa, será uma mulher. A pessoa que abre a comitiva não poderá revelar nunca que é o portador da cruz, só o seu cada vez mais decadente aspecto e evidente esmorecimento físico que o vai levando de cara a morte é o que indica a sua condição.
Em algumas ocasiões a companha pode inclusivamente ir na procura duma pessoa e tirá-la pelo olho da chave da porta ou por um oco. A Companha também agoira a morte, deixando um caldeiro diante da casa de aquele que vai a morrer. Às vezes há um cadelo negro com um ajóujere que vai com a companha. A misteriosa comitiva, e segundo a crença recolhida nos Ancares, toca o Miserere e toca bombos e tamboris.
Há duas personagens que em ocasiões dirigem a comitiva e que nos interessam especialmente: O Bode e a Estadeia. A Estadeia é um fantasma alto que vai coberto com um sudário do qual lhe, sobressai uma caveira com olhos vermelhos e que bota baforadas pela boca. Para alguns a Estadeia dirige uma comitiva distinta à Companha; uma comitiva mais agressiva que captura e maltrata à gente. A Estadeia pode apresentar-se só como agoiro de morte sendo similar ao Ankou bretão que dirige as Anaon.
O Bode é o dirigente da Hoste ou Hostilha. Para os autores do Dicionário dos seres míticos galegos, trata-se de Odin. Em Cornualha Odin é convertido num demo negro que dirige cães que capturam almas humanas.
Tal e como recolheu Carmelo Lisón Tolosana em "La Santa Compaña" há muitas testemunhas de pessoas que asseguram que estas aparições provocam danos àqueles com os que topa. Luzes, ruído...precedem uma aparição que flutua no ar e que desloca às pessoas para um lugar longínquo quando as apanha. Depois de serem arrastadas descobrem os danos que lhe foram provocados.
Há por costume sinalar a relação existente entre a Companha e a crença no Purgatório. Para os galegos, o purgatório é o lugar onde se acham as Ânimas que não estão nem no céu nem no inferno. Isto supõe que as Ânimas se passam um tempo na terra antes de se encaminharem ao Além. Esta crença pôde ser uma sincretizaçãó das ideias cristãs com as célticas no que diz respeita da última viagem... já que para os povos celtas as Ânimas iam ao Além dirigindo-se de cara o Oeste, seguindo os deuses dos laços e embarcando-se rumo as Ilhas da Eterna Juventude. A crença na companha e a crença nas Ânimas que percorrem os caminhos é uma continuidade das velhas ideias dos nossos antepassados celtas no que diz respeito da morte e a última viagem. Nesta tem-se como condição prévia à ida definitiva o ficar certo tempo na terra.
Para o antropólogo Manuel Mandianes, o Além é uma dimensão paralela com a que se contata com frequência...A Galiza divide-se em paróquias dos vivos mas também estão as paróquias dos mortos. Os antigos celtas tinham esta ideia, se bem situavam as Ilhas do Além (Tir naN Og) lá onde o sol se oculta. Isso não era obstáculo para contatar com frequência com os espíritos do Sidh. De facto, a companha aparece por vezes voando e dirigindo-se a certas Ilhas com rumo Oeste. Isto indica que na mitologia galega perdurou a ideia da viagem as Ilhas do Além.
São muitas as evidências que nos indicam que os seres da noite que dirigem "as Companhas" são uma lembrança dos velhos deuses condutores de Ânimas. Deuses aos que se vinculavam os guerreiros e que se apareciam na noite no seu eterno caminhar. Cães, cadeias, tambores, direção até certos encraves....eis a herança da caçaria selvagem, dos exércitos da noite e dos deuses obscuros.
Com a chegada do cristianismo e a sincretização, os deuses dos laços seriam cristianizados como é o caso de São Pedro, São Torquato( Trocado), Santo André (Andor, o caminhante)...mas também contamos com psycompompos como São Roque, tão vinculado ao cão.
Chama a nossa atenção também observar a ideia que transmite o sepulcro de Pero de Andrade. O seu sepulcro dá ideia duma caçaria. Está assentado sobre um urso e um javali, animais que para os celtas representam a soberania e a força guerreira vinculada ao deus supremo mas também têm a ver com o sacerdócio. Aos seus pés há dous cães, animais psycopompos. Este cavalheiro galego morto no 1397, conhecia bem todas estas crenças que codificou na sua tumba...
Sabido é pelos antropólogos que as Ânimas dirigidas pelos deuses dos laços seguiam um roteiro, um caminho bem conhecido desde faz milénios que conduzia as Ilhas do Além. Um caminho que é a projeção da Via Láctea na terra e que segue o trânsito solar. O caminho de Santiago e o de Santo André são a lembrança desse velho caminho. Se Setanta (Cuchulainn) e Santo André são os caminhantes, se Ogmios/Ogma é o caminho...que caminho é que faziam os caminhantes? E quem era esse deus "sem nome" que os aguardava?.....
O lume da lareira está esmorecendo. Vamos acabando por hoje a polavila, mas em vindoiros artigos trataremos de esclarecer o mistério da última viagem dos celtas.
2 comentários:
A riqueza cultural e sabedoria européia dos primóridos é incomparável.
Que todos nós sejamos guardiões disso tudo, pois pouco vale estar em um mundo sem isso.
A MENSAGEM VEM DE LONGE.
Perfeito artigo! Finalmente pude ler em algum sítio virtual algo que tradicionalmente sempre vi como elementar: a associação da Santa Companha com a Caçada Selvagem.
Hoje, aqui no Hemisfério Sul, estamos a celebrar os Idos. Que os Ancestrais nos bendigam sempre /|\
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