Por Carlos Solha
Aproveitando o relanço da
Semana Santa -Luceira Túrvia, como a nomeiam os canteiros da cerna, pois
“túrvios” somos os pecadores-, espremendo-lhe, digo, todo o sumo ao lazer, fiz
repouso em Cerdedo e ali partilhei um gostoso jantar adubado com sobremesa
paroleira. Muito dão de si os latriques cafeinados.
Quase ainda não tinha
engolido duas xícaras e um sorvo dum Porto, quando uma das comensais, bem
aproximada aos setenta, soltou uma expressão que fez esticar as minhas orelhas
do etnógrafo lupário e as daquele neno que fui.
A informante involuntária
andava na porfia de apaziguar um pequeno malandro, uma miga consentido.
Esgotado o repertório da “supernanny”, a avó, revirando a criança, espetou-lhe:
“Se não te aquietas, ponho-te fora para que te leve tua mãe galega!”.
As primeiras são as "Matres" de Bibracte, cidade do povo celta dos Aedui da Gália |
Olhem, eu não lhes fui um
santo e meu irmão pequeno, também não. Na aldeia, andávamos, entre outros
apelidos, pelos Zipi-Zape... Escuso portanto, oferecer ao leitor muitas
mais explicações.
Sendo
como éramos afilhados do demo, muito sabíamos de ameaças. Que eu lembre, minha
mãe tinha foro com o homem do saco, com a bruxa do moinho dos Montinos, com as
aranhas, com o lobo, com o tio Gardunho, com os bichos peludos, com a
Sisocorda, com o homem das barbas, com o cocão, com a Ramuda, com o
Sacauntos... e, na casa, escutávamos chamar por eles a cada pouco.
O
ritual da invocação sempre se acompanhava do brandir duma chinela, duma
escumadeira ou duma vassoura. Costumes que a moderna sociedade foi extinguindo,
pelo medo ao que dirão. Hogano, leva-se mais o do “colegueio” e a negociação inter
pares. Intuo que os enxebres assusta-nenos, a poder de reclui-los no
ostracismo, já devem ter procurado outras ocupações, ou outras latitudes.
Mais,
amentar a “mãe galega” para amedrontar um menino era-che uma circunstância
novedia, daí que a minha má consciência de pilhabão optasse, de primeiras, pela
alerta “Defcon 1”.
Uma
vez racionalizada a situação, sobreveio-me a impressão de ter escutado uma das
muitas expressões ofensivas com as que os de fora, batujando no estereótipo,
nos presenteiam cada pouco. Recomendo para o particular a leitura da coleção de
ensaios intitulada “El gallego, Galicia y los gallegos a través de los tiempos” (1985), da autoria de José Luís Pensado.
Era
inconcebível que aquela avó reconviesse o seu neto chantando-lhe que, de não
mudar a conduta, o ia botar à rua para que a sua verdadeira mãe –de
nacionalidade galega- o aturasse. Mulher da vida?, filho de trás da
silveira?...
Não
me contendo, perguntei. Com o riso nos lábios, a mulher respondeu-me que o que
acabava de ouvir era um dito velho e que sua mãe e a mãe de sua mãe também o
empregaram nas retesias domésticas. Assim, mesmo, acrescentou que desconhecia o
significado da locução e que, inconscientemente, fazia uso dela com o objetivo
–infrutuoso- de endireitar os cativos que deixavam ao seu cuidado. Quando lhe
enumerei a restra de assusta-nenos que empregava minha mãe comigo, disse-me que
habitualmente eram requeridos também por ela, que toda ajuda era pouca para
encarreirar as novas gerações: “Estes já não se assustam com nada, estão
afeitos a ver de todo na televisão”.
Já
na casa, procurei informação sobre a “mãe galega” e, suspeitando a demonização
dum antigo númen indígena, após muito remexer, fui dar com o nº 3 de El Eco
de Galicia (Revista Semanal de Ciencias, Arte y Literatura), editado na
Havana em 16 de julho de 1882.
Na
página 2 da nomeada publicação, reparei no titular “Las Madres Gallegas” e,
assim que comecei a leitura do artigo, assinado por M. Esmorís, fiquei
atordoado:
En casi todo el territorio de Galicia
puede decirse sin temor que no hay madre alguna que no haya intimidado alguna
vez a sus inocentes hijos con la legendaria frase de “Busca a tu madre
gallega”. Cuando sucede esto, es que el niño ha cometido alguna falta
reprensible y después de regañarle fuertemente, si aún no se muestra
arrepentido, entonces se le lleva a la calle, se le cierra la puerta de la casa
y entre otras amenazas, aún hoy se usa la de “Busca a tu madre gallega”.
Aufanian Matrónae do templo romano de Görresburg, Nettersheim (Rheinisches Landesmuseum Bonn). |
Como
podem imaginar, não desapeguei os olhos do texto até a sua conclusão.
Acrescentamos, portanto, umas passagens do mesmo por considerá-las de grande
interesse:
As “Mães Galegas” trazem a sua origem das divindades célticas sob cuja
proteção se punham os celtas, designando-as com o nome do terreno que ocupava
cada tribo [...]
Com o transcurso do tempo, os homens estudiosos e afeiçoados ao conhecimento
das antiguidades, a força de investigações e de trabalho, chegaram a nos
provarem com dados muito seguros, a existência das “Mães Galegas”, que foram
representadas ordinariamente por três donzelas, levando nas suas mãos, flores,
frutos e pinhas.
Murguía o ilustre historiador galego, que possui muitos e eloquentes
dados em matéria de antiguidades, traz na sua obra “Historia de Galicia”, copia
de uma inscrição que foi achada perto da Crunha e diz assim: T. Fraternus /
Matribus / Gallaicis / v. s. l. m. “Tito Fraterno pagou de boa vontade o seu
voto às “Mães Galegas”.
As “Mães Galegas” são divindades da mitologia céltica a cuja
intervenção e poder nos destinos da humanidade deveram render culto das suas
crenças os idólatras, nossos progenitores, avezados ao fatalismo e à
heroicidade por temperamento e pela educação do povo do qual procediam...
Desde aquela altura, os celtas galegos, cedendo no entanto ao contato
contínuo e preciso de outras tribos irmãs [...] legaram a sorte dos seus filhos às “Mães
Galegas”, e a través daquelas gerações que variavam em costumes e em crenças,
sem se darem conta elas próprias, ficou, apesar dos conquistadores, como uma
reminiscência, como uma vaga lembrança de primitivos dogmas [...] quando
duma forma ou de outra, fazem uso do dito vulgar “procurar a tua mãe galega”.
M.
Esmorís, autor do artigo, vincula a inscrição votiva à cidade da Crunha, mas,
consoante as minhas pesquisas, a vila onde se achou o epígrafe lapidário foi
“Coruña del Conde”, na atual província de Burgos (prédios da antiga Gallaecia).
Consultem-se no que diz respeito a Júlio Núñez Marcén e Álvaro Blanco (2002) ou
o artigo de Joaquín Gómez-Pantoja titulado “Las Madres de Clunia” (1999).
As chamadas "Mães Galegas" ou "Matribus Gallaicis" estão no Corinium Museum de Cirrencester (Inglaterra). |
O
lugar onde se erigiu ou achou o altar tem uma importância relativa. O
substancioso do achado acouta-se ao contido da inscrição. Um galego de há 2.000
anos, longe ou não do seu lar, encomendando-se às deusas, às nossas Mães
Galegas.
J.
Gómez-Pantoja, no citado trabalho, enumera os atributos com os que
habitualmente eram representadas as Deusas Mães: “cestas de frutos,
cornucópias, pão, moedas...”, acrescentando que estas ctónicas divindades são
advogosas da fertilidade, da prosperidade, dos negócios..., atingindo as virtudes
salutíferas doutras deidades aquáticas (ninfas): fertilidade, fartura e saúde.
As Deusas Mães vinculavam-se aos mananciais mineiro-medicinais, aos ilhós
salutíferos, às burgas, muito abundantes na geografia galega, “benéfica
exsudação das divindades da Terra”.
A
Mãe Galega é uma deusa trinitária. A tríade divinal que, desde o alvorecer do
nosso tempo, rege no tradicional panteão galego, revela-se em Cerdedo, não só
na fraseologia popular, mas também no folclore petrificado, adubo conatural
deste bento território.
Cumpre,
daquela, lembrar a tripla manifestação da Moura já consignada para o monte do
Seixo, montanha da prodigalidade: a Moura Pirocha, a Moura do Castro Grande e a
Moura da Laja-Moura.
A
Moura Pirocha, donzela, arquétipo da pródiga primavera; a Moura do Castro
Grande, a mulher madura, adscrita ao verão, ao tempo da colheita, e a Moura da
Laja-moura, venerável anciã, a Velha, sábia oraculária, identificada com o
inverno: “Ainda vai vir muita chuva, que brilham as pedras do Seixo”, diz-se em
Cerdedo.
A
Moura Pirocha, explícita, tombada ao cumprido sobre a sua almofada de pedra; a
Moura do Outeiro do Castro, núbil, casadoira, custódia de riquezas nunca
inventariadas; a Velha da Laja-Moura, fazedora do arco do céu que, fincado
naquela fatídica peneda do monte de Meilide, abaixa o lombo para abeberar nas
aguas do poço Fumegas, góio do rio do Seixo.
A
mesma Moura, humanizada baixo o antropónimo Maria: Mari Diz, a costureira
afogada no tremedal da Mulher Morta, em Gestido; A Maria Diz da Serra da Mulher
ou do Cordal do Testeiro (Forcarei); a Maria Miguez da Cuinha de Vidoido
(Cerdedo); a Maria Amena das lombas da Cima-da-Vila (Caroi-Cotobade); a
Marimanta, a Marujaina; a Maria evocada no principiar dos melhores contos: “Em
tempos de Maricastanha...”, aquela pretérita idade na que a Deusa Natureza
acaparava toda a nossa atenção.
A
Deusa Mãe Terra, uma e trina, a semelhança das três Marias que esconjuram o
enganido infantil à roda dum cachopo carvalhão, na fronde da aldeia cerdedense
de São Bernabeu (advocação substitutiva), ou de redor duma mesa propiciatória.
As
Três Laranjiñas do Mar, as Três Mouras, as trigémeas da fonte das Donas de
Vidoído (Cerdedo); Ana, Aureana, Ana Manana... Quem sabe se a expressão
“Madre!” “Minha Mãe!” ou as suas castelhanizações “Mi madrinha!” (ou “Mimá!”)
não serviram para exortar o seu valimento.
O
culto á Deusa não é uma religião, mas ao contrário, é a porta do
auto-conhecimento, como indivíduos, como povo. O dia no que os galegos lhe
viramos as costas á Mãe Galega, e optamos pelo culto aos bonecos
procissionantes, trocamos, abofé, os olhos pelo rabo.