Por Paulo Soriano (São Salvador de Baia-Brasil)
Que viva a Espanha, sim.
Mas que nos deixe viver em paz, também.
A maligna influência do Reino perpassa Portugal e chega ao Brasil como se fôssemos puros clientes de uma cultura superior. Séculos e séculos de desinformação mui bem pensada e articulada com vistas à destruição de nossa cultura.
Olavo Bilac
(1865-1918) , o maior dos parnasianos brasileiros, publicou, em 1888
– o mesmo ano da abolição da escravatura e o anterior ao da
proclamação da República –, um dos mais famosos poemas escritos
no Brasil: “Língua portuguesa”.
Olavo Bilac (1865-1918 |
É bem possível que
muitíssimos galegos o ignorem. Por isso, reproduzo-o na
íntegra:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Aqui,
detenho-me apenas na primeira estrofe, Última flor do Lácio, inculta e
bela, que em si
concentra a essência do soneto.
Talvez eu vá
um pouco além, mas não muito.
Apesar do
nobre intento – o de louvar, com rigor formal e apuro estético, a
língua em que escreve e fala –, o autor, o esmerado Bilac, não
conseguiu superar a erronia e a ambiguidade.
Comecemos,
pois, por ela: não se sabe, exatamente, o que quer dizer o vate com
“inculta”.
De fato, por
inculto podemos entender aquilo que, apesar de todas as suas
potencialidades, não foi cultivado.
Ou, noutro
sentido, aquilo que, desgarrado da cultura que lhe deu origem –
seria o Lácio? – padece de imperfeições culturais que o torna
diminuto ante a própria gênese, ou aos seus pares, porque estes
estão mais próximos e mais afeiçoados à cultura da qual
provieram. O termo “rude”, empregado numas das estrofes mais
abaixo, reforça a percepção de que era esta a intenção do autor.
Contudo, não
sei... Pode ser um ou outro. Ou, um e outro, o que é menos
provável, dada a natureza formal da escola à qual se filiava Bilac.
Como bom parnasiano, Bilac não se lançaria a certas aventuras
coetâneas, simbolistas, como as ambiguidades puramente
surpreendentes e sibirlamente intencionais.
E vamos à
erronia.
Como se pode
reputar inculta – no primeiro dos sentidos, o mais improvável, de
que cuidamos –, a língua que produziu um dos maiores gênios do
Renascimento – e ele consta do próprio do poema de Bilac – que
nada deve a Dante ou Shakespeare? Como se pode reputar inculta esta
terra úmida, arejada, de cujo útero provieram escritores admiráveis
– já ao tempo de Bilac –, como Camilo, Castilho, Alencar,
Azevedo, Machado, Herculano e Eça?
E, indago,
como pode ser inculta – na segunda das acepções –, uma língua
que, já nos séculos XIII e XIV, adornada por melodias de incrível
beleza, hoje em parte reconstituídas, perpassava e grassava, com sua
graça, corações e almas de não apenas de andarilhos menestréis,
em mulas montados, mas – coisa inusitada e irrepetível em
quaisquer das eras – de nobres e soberanos poderosos, agora
convolados em músicos e poetas inspirados, a exemplo de D. Diniz de
Portugal e do estrangeiro D. Afonso de Castela? E vejam que D.
Afonso, renunciando à língua que ajudou, com grande esforço, a
construir, não compunha e escrevia senão em português. Enquanto o
castelão engatinhava, o português – ou o galego, como queiram –
já era uma língua culta, assentada em boa escrita e belíssima
literatura. Somente italiano e o provençal – hoje agônico, este
último – poderiam, dentre as línguas neolatinas, ombrear-se então
ao português, desde já antigo, bem escrito e belo. Um esplendor
naquelas épocas medievas. Um esplendor ainda hoje – quem o nega? –
e um esplendor nas épocas de alhures e algures.
E não é o
português, como pretende Bilac, a última flor do Lácio.
É, sim, o
português esplendor, mas não sepultura.
O túmulo a
outros pertence.
Na visão de
Bilac, o português desgarrou-se doutro romanço – que não pode
ser outro que não o galego – e se constituiu em língua própria:
o último rebento – o caçula, o benjamim – do latim.
Creio que o
que sucedeu foi bem o inverso: o velho e culto galego manteve-se em
Portugal, tal e qual quando este ainda era mero condado da Galiza, e,
conservando-lhe a estrutura e ingênita poesia, livre de toda nefasta
– primeiro próxima; depois poderosa e ao final iminente –
injunção castelhana, galgou amplos horizontes. Mas, em contraponto,
a Galiza, a pátria mãe, a gênese magnífica de todos nós, não
logrou a mesma sorte. Todos o sabemos.
Nada há de
mais legitimamente galego do que se fala – e sempre se falou – ao
sul e para além do Minho. Sempre foi galego e sempre o será. Se o
galego, fadado à extinção nos próprios lindes, se expandiu,
adornou-se de novas cores e de ritmos, se se deixou penetrar polos
ventos cálidos dos árabes, ameríndios, africanos ou asiáticos,
cumpriu apenas o seu fado, o seu desiderato. Levou-se pelo hálito
inexorável do tempo e do destino. Mas a si próprio não renunciou,
e, por isso, conservou-se em si mesmo, malgrado em terras alhures,
bem alhures, que não a própria, tão condoída de hostes castelãs.
Hoje, todo brasileiro, ainda que não o saiba, fala galego. Mas nem
todo galego, quando não está a falar o habitual castelão, ainda
que pense estar a falar a língua de sua pátria, porque convicto de
que aprendeu corretamente o galego na escola – e não , como seria
natural, com sua mãe, ou a mãe de sua mãe–, não o fala.
Paradoxo? Quem sabe se não?
Em e-correio
dirigido ao mestre Estraviz, escrevi, com muita convicção: “Eufalo galego com toda honra que o galego me permite, e escrevo na língua galega com todo ardor.” Bilac também o fazia –
infinitamente melhor que eu – e o demonstrou em seu pulcro soneto,
embora não se desse conta de que falasse galego. Sim. Assim
como Machado, Bilac falava galego. Mas não somos a última flor do
Lácio, nem somos incultos. Quanto à beleza... O próprio poema de
Bilac – sim, o lindo poema de Bilac – já o responde.
A língua
portuguesa é, sim, esplendor, porque em si mesma dor e esplendor.
Mas não último rebento. E, jamais, sepultura. Não fomos nós que,
incultos, impusemos uma pá de cal no latim. Este mérito, ou
demérito, a nós, que a falamos – seja em Valença do Minho, Tui,
Maputo, Dili, Benguela, São Tomé, ou Itabuna – não nos pertence.
Quiçá a outros, realmente incultos, em ambos os sentidos, acuda a
pecha .... Quiçá...
Talvez a
Galiza se faça sepultura da própria língua – a língua de Dom
Dinis, Camões, Rosália, Castelão , Machado e Herculano – que
meigamente criou. Que construa em si mesma, e de si mesma erija o
próprio túmulo, cravado de inscrições espanholas, à guisa de um
arrogante epitáfio de puro desdém.
Cabe aos
galegos a escolha.
Se os galegos
optarem por destruir o que há de maior de si mesmos, o que fazer?
O conforto
está alhures. Se Deus me deu a magnífica honra de falar galego, e
ensiná-lo aos meus filhos, tal é uma atitude divina. Se o galego
não cabe na Galiza, expande-se maravilhosamente. Queira ou não
queira o Reino de Espanha.