Artigo dedicado para o amigo brasilego Paulo Soriano que leva a cabo a sua luta por dar a conhecer a Galiza aos brasileiros. Dele foi a tentativa infrutuosa de publicar este artigo num jornal do Brasil. Com muita amizade e muito agradecimento. Abraço, meu caro.
Galiza é o País dos galegos, mas a origem da palavra "galego" nada tem a ver com gente loira ou ruiva (1). Galego ou galega é a pessoa originária dum País milenar que está localizado na Península mal chamada Ibérica (2), no seu canto noroeste. Pertence politicamente à Espanha mas dir-se-ia que é o retalho que lhe falta a Portugal para chegar ao Mar Cantábrico, ou na sua zona mais ocidental, também chamado Mar Céltico.
As primeiras referências que alguém dá
da Galiza são da época na que os historiadores gregos tentavam conhecer a
Europa mais longínqua desde a sua perspetiva. Os nomes de Ophiusa (por ser país
povoado por serpentes) (3), Oestrymnia (provavelmente por ser o País onde
morriam os rios do Oeste) (4), Keltiké (pela personalidade étnica dos seus
habitantes), Dragania (Terra dos dragões), ....foram nomes usados pelos cronistas clássicos, mas foi por volta
do século II a.C quando no fragor das guerras lusitanas, os galegos entram na
história ruidosamente. As tropas romanas chocam frontalmente na foz do Douro
contra um povo que não aceita domínios imperiais. Dizem as crónicas romanas que
o rio Douro passava vermelho do sangue de 60.000 soldados mortos em combate. Eram estes
originários de Cale...ou Kale, hoje Vila Nova da Gaia ao Sul do Porto. Daí o
céltico nome de “Kalleaikoi”, o seu gentílico, do que derivou a forma latina
“Gallaeci” e daí galegos. Foi assim como a bravura duma tribo céltica da foz do
Douro denominada assim, deu o nome a todos os “lusitanos” para o norte do Douro
e também lhe deu o nome ao País: “Kallaikia” ou segundo a versão romana
“Gallaecia”.
O maldito romano que cometeu esse
bastardo e sacrílego ato de violência era Decimus Junius Brutus, que recebeu
dos seus e desde esse dia o sobrenome de “Gallaicus”, quer dizer, o Galego.
Desde essa nefasta data da batalha do
Douro de 139 a.C. até o 25 d.C em que os romanos completaram a conquista da
velha Gallaecia no cerco do Monte Medúlio, passaram-se mais de século e três
quartos para que os romanos pudessem dizer que esta terra era deles. Foi aí,
finalmente, no Monte Medúlio onde homens, mulheres e crianças resistentes,
decidiram morrer ingerindo a venenosa saiba de Teixo, uma árvore sagrada dos
celtas, antes do que caírem escravos dos pervertidos romanos mediterrânicos.
Ainda hoje é de difícil ubiquação esse Monte Medúlio, mas com probabilidade
poderia estar nas Médulas de Carucedo, na atual comarca leonesa, embora de fala
portuguesa, denominada O Berzo... ou talvez um bocado mais para o Norte, no
hoje chamado Monte Cido na Comarca do Courel (5).
A Galiza esteve quase quatro séculos
dependendo de Roma. Não sem conflitos, mas finalmente com grandes achegas nos
anos finais do Império. A chegada do cristianismo deu personagens como
Prisciliano, a primeira vítima da repressão derivada da institucionalização da
religião cristã, e de quem se diz que é realmente o sepulcro da Catedral de
Compostela, não de Santiago o Maior, do qual se sabe com certeza que nunca
esteve na Península Ibérica. Prisciliano, chefe duma ideia do cristianismo
adaptado aos galaicos tentava sincretizar a primitiva religião galaica de
raízes druídicas à nova filosofia originada na predicação de Jesus de Nazaré.
Ainda há mais alguns personagens como a
Virgem Egéria, uma mulher, provavelmente priscilianista que viajou aos Santos
Lugares e que nos trouxe umas narrações conhecidas com o nome “Itinerarium Egeriae”; o historiador Paulo Orósio, contemporâneo e colaborador de Santo Agostinho de Hipona; o também historiador Hidácio Lémico bispo de Chaves (Aquae Flaviae) e
furibundo inimigo dos suevos; o Imperador Teodósio e a sua mulher Aelia Flácilla, fundamentais na queda de Roma junto com os seus filhos Arcádio e
Honório que passaram a governar as duas partes nas que ficou dividido o Império
uma vez ocidente vê a chegada dos povos germânicos....
A Galiza recebe com relativa
tranquilidade a queda de quem a dominou quase quatrocentos anos e vê aparecer
pelas suas fronteiras os Suevos, povo procedente das florestas germânicas que
se estabelecem no País com uma política de “trocar a espada pelo arado” segundo
as palavras do seu rei e primeiro rei da Galiza, Hermerico, com o fim de
partilhar destino com os nativos. A habilidade dos dirigentes suevos que
visavam a integração como fórmula para a paz e a harmonia entre galegos e
suevos é eficaz e acertada. Com isto a Galiza passa-se a constituir no primeiro
reino independente de Roma em 411, o primeiro em acunhar moeda, o primeiro em
dar-se uma legislação com organização territorial incluída que subsiste ainda a
dia de hoje no noroeste peninsular, o primeiro reino cristão e católico da
Europa... Era o chamado primeiro Gallaeciense Regnum que durou desde a sua fundação em
411 até 585 em que os visigodos, instalados no centro da Hispânia anexam
Galiza.
Vão ser 126 anos em que a quase totalidade
da península e parte da atual França vão estar geridos desde Toledo mas cujos
reis recebiam o título de “Rex Gallaecia, Spania et Gallia”. Só até que por
volta dos começos do século VIII uma guerra dinástica e o pacto entre galegos e
muçulmanos norteafricanos faz com que estes últimos entrem na Europa e ocupem o
que na altura era denominado por eles de “Spanija”, “Al-Ishbam” ou
“Al-Andalus”, um território que coincidia com a zona de domínio visigótico e
limitada pelo norte com o Mondego, o Douro e o Ebro aproximadamente. Ao norte
do Mondero e do Douro ficava a velha Galiza, numa situação de vazio de poder e
dividida em múltiplos poderes locais mas também os vascões e os francos que
marcavam a sua presença. Ao Sul, o Islão, representado pelo poder cordovês.
A Galiza ficou longe do poder andalusi e
numa situação de desgoverno sem poder unificado mas é desde um território da
atual Astúrias, onde os pequenos régulos das Primórias organizaram e
emprenderam a campanha de unificar o País novamente. Em poucas décadas a Galiza
voltava a ser una e as marcas da região coninbriguense voltavam a ser fronteira
como em época sueva entre a Galiza e o Al-Ishbam, Spanija ou Al-Andalus (6).
Esta situação durou séculos, até que um rei chamado Afonso VI anexa aos muçulmanos
o reino de Toledo. É aí quando a recém nascida Castela aliada do papado junto
com os conflitos entre Compostela e Braga vão fazer que a territorialidade
histórica da Galiza quebre definitivamente (7).
Castela reafirmava-se como reino
opositor à Galiza, e Portugal nascia quebrando assim uma unidade histórica que
dificultava todo o projeto histórico galaico. Portugal apanhava um caminho em
solitário e fechava a Galiza no seu canto noroeste fazendo-a pressa fácil duma
Castela depredadora que contava com o apoio dos Papas de Roma à vez que
ampliava o seu território e se fazia hegemónica até o ponto de se apropriareem do
nome geográfico de Hispânia ou Espanha. A Galiza acaba, depois de vários
séculos de conflitos e sangue, entrando na órbita de Castela que consegue
finalizar o seu labor de “pacificação” nos finais do século XV, uma década
antes de os castelhanos chegarem a América.
Todo este percurso histórico não teria importância para um brasileiro se não acrescentássemos que naquela Kalláikia céltica, ocupada por uma Roma agressiva, nasceu uma língua mescla da originária língua dos Kalláikoi com o latim trazido do Lácio pelos comerciantes e soldados romanos. Foi no primeiro reino da Europa livre de romanos onde se gestou e configurou com o nome dado por alguns cientístas (8) de Galaico, um romanço que segundo alguns autores tinha duas variantes: o galaico oriental ou asturo-leonês, e o galaico ocidental ou galego-português. O primeiro gerou o castelhano na sua parte mais oriental em contato com o basco mas o segundo foi a língua romance mais importante da Europa medieval do ponto de vista literário (junto com o ocitânico), usado e cultivado tanto na Galiza, como em Portugal, Leão ou a própria Castela. A ruptura do Reino da Galiza e o surgimento dum novo reino, o de Portugal, fez com que a nossa língua pudesse ter uma expressão culta no único reino que ficou livre de Castela dentro da península hispânica e pudesse ser levada a América num ato colonial, nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, fazendo com que o atual Brasil a tomasse como a sua própria língua. É esta língua, galega em origem, crioulo latino-céltico nascido na velha Kalláikia céltica a língua do Brasil atual, quinta língua mais falada do mundo, com um porvir que já desejariam para si outros países com importantes doses de poder e com um futuro promissor que não têm outras línguas extensas ou poderosas politicamente. Assim, e finalmente, podemos dizer que as raízes mais fundas do Brasil estão naquele País enevoado do canto norocidental da Hespéria que resistiu Roma quase dous séculos, que uma vez dentro de Roma deu inteletuais e pensadores de importância internacional e atemporal, que criou o primeiro Reino medieval da Europa, que safou do domínio toledano trazendo e patuando com os muçulmanos e em soma, que criou a língua mais harmónica e musical do ocidente medieval. Esse País é a Galiza e essa língua é o galego, conhecido internacionalmente com o nome de Português.
Referências:
(1)
Ainda que parece ser
que aqui há mais percentagem de loiros do que no resto da Península Ibérica.
Talvez algo tenha a ver o facto de serem nomeados de “galegos” ou galegas” a
gente loira no Brasil...
(2)
Pois não só de Iberos
de origem norteafricano está formada a Península Hispânica ou Hespérica.
(3)
Ophiusa faz referência
a um País onde havia serpentes mas talvez e segundo alguns historiadores, um
animal totêmico próprio da região ocidental peninsular. O culto à ofiolatria
está totalmente documentado na Galiza histórica desde a noite dos tempos e
ainda hoje há restos.
(4)
Oestrymnia pode-se
descompor em “Oest-“ (oriente, oeste) e “Ymnia” (ou Immia que significa na
língua proto-celtica “rio” ou “país de rios”). Portanto, "o Pais dos rios do Oeste".
(5)
A palavra “cido”
provém do CAEDERE latino que significa matar, donde CAEDO significa
“exterminar”, “imolar” e CAEDE-IS significa “matança”, “carnificina”.
(6)
A região
coninbriguense mudou várias vezes da Galiza para Al-Andalus. Em total dez, mas
sempre gerida por um poder político moçárabe, quer dizer, de religião cristã
embora fosse dependente às vezes de Córdova.
(7)
A unidade de todo o
Gallaeciense Regnum ficou por vezes partida mas sempre provisoriamente já que
recuperava a sua territorialidade completa graças aos aconteceres políticos da
época.
(8) Os
cientístas em questão são Carvalho Calero ou Rodrigues Lapa. Da mesma forma,
Eugén Coseriu denomina a essa língua com o nome de “galaico-astur”.
7 comentários:
Um passeio per o nordeste brasileiro, meu caro, no interior mesmo, onde inda se ouve as falas antigas, onde se deparam passado e futuro sem tanta nitidez. O 'luso' que falamos não é bem mais português do que galego, mas sim uma mescla de sons que nos incita a pensar sobre tal diferenciação que tanto afirmam alguns. Eu falo galego-português!
LUSOFONIA OREM LABOREM AMEM
Zé, belo e importantíssimo artigo!
E muito obrigado pela dedicatória.
Abraços
Paulo
Importantíssimo!
Parabéns pelo Artigo - corajoso, consciente, libertador!
Fraternalmente,
Romeu Agostinho.
Amei o posto. Magnífico! Quer saber um pouco de como poderia ser o galaico antigo? Venha ao interior de Minas Gerais. A maioria dos portugueses que vieram para cá vieram do Minho e também da Galiza (espanhola). Pessoas da área rural, que mantiveram fortemente os traços do antigo galego em suas falas, por não terem sido alfabetizados. No Brasil, permaneceram no rural e falam de forma "caipira" o que na verdade é um riqueza imensa. Falam o galego antigo. Não sou grande estudiosa, mas percebo que o que diz "errado", na verdade é herança do antigo galego, conservado nas falas de pessoas como meu avô e até mesmo meu pai. Se alguém precisar de ajudar em relação a estas expressões para seus estudos, podem me chamar aqui.
"Oestrymnia (provavelmente por ser o País onde morriam os rios do Oeste)"
Mas bien se trata de lo comedores de ostras. Los pueblos de la franja atlantica eran conocidos por los montones de restos de conchas marinas, base de su dieta. Oester u oyster es ostra. Oestrymnio es literalmente "comedores de ostras".
Interessante achega esta última de Ann.
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