segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Reminiscências xamánicas na Galiza Atual: Personagens e Mitologia. (Segunda Parte)

Por David Outeiro.

Apesar do tempo passado, ficaram certas personagens na Galiza atual que considero têm caraterísticas próprias dos xamãs, ou pelo menos manejam os Estados Alterados de Consciência (em adiante EAC). Eis alguns exemplos:


Meigas: Tal e como afirma Josep M. Fericgla na sua obra “Los chamanismos a revisión”: “As meigas galegas não correspondem a única imagem do xamanismo proposto por M. Eliade, mas sem dúvida, trata-se duma forma de ação equivalente ao xamã ameríndio. Podemos considerar que as meigas constituíam uma manifestação do antigo xamanismo celta sobrevivente no SW europeu ate épocas muito recentes: emprego dos enteógenos; acesso por meio dos EAC aos espíritos que moram nos mundos alternativos; aplicação médica das suas ações; luta pelo enigmático poder que possuem os feiticeiros; função adaptógena projetada na sociedade...” 



Em relação aos preparados das meigas, está muito difundida a crença de que empregavam o sapo nos seus unguentos. Algumas espécies do género Bufo contêm Bufotenine, uma substância enteógena semelhante ao DMT da aiauasca. Apanha-se na queima de cinco bruxas de Fago (Aragão) que “Tenian un sapo y lo azotaban con un brezo y cogían lo que le hacían echar y se untaban con ello y iban a donde querian”. Deste jeito tiravam a secreção tóxica que o sapo emprega para se defender dos predadores provocando irritação. Esta secreção contém a bufotenina que se untaria nas vassoiras que as meigas empregariam para se esfregarem. Depois o efeito enteógeno produziria a conhecida visão de voo, as transformações em animais, aparição do diabo, etc...




Pastequeiros: O pastequeiro é um estranho personagem das freguesias de Santa Comba e São Cibrão cuja função é curar o meigalho. O curioso dos santos de ditas freguesias, sempre presentes nas curações é que antes do que santos foram bruxos. O
pastequeiro toma as orações da missa e estas são empregues no ato de curação junto com textos mágicos. O doente terá que achegar três libras de pão e três netos de vinho, dando-lhe a sua parte (que tem proibido comer) às ânimas. Este curioso rito supõe um culto às ânimas dos devanceiros, tendo por objeto a estabilidade do nosso mundo com o Além, tal como fazem os xamãs nas suas comunidades. O ofício transmite-se de pais a filhos.





Espiritados ou corpos abertos: Em 1963, Vicente Risco afirmou sobre eles: “Chama-se corpo aberto ao daquela pessoa viva no qual se introduzia ou pode-se introduzir um espírito estranho, ou aquele no qual falam as almas dos defuntos, bem porque elas querem, bem forçados pelos exorcismos ou obedecendo os conjuros dos bruxos. Trata-se duma sorte de possessão temporal (e ainda momentânea) ou permanente, do corpo dum vivo pela ânima dum defunto, ou por um espírito doutra classe mas que não se confunde com a possessão diabólica”.





Temos de novo a intercessão do xamã entre o nosso mundo e o Além. Muitos xamãs ao longo do mundo afirmam que em ocasiões são possuídos por espíritos que falam a través deles, voluntária ou involuntariamente. Também se pode dar que qualquer pessoa duma sociedade xamánica seja possuída por um espírito, tendo que ser sanada e libertada do seu possessor. Na Galiza atual pensa-se que os espiritados vem-se afetados pela ânimas por causa da sua debilidade. No caso galego, serão os curas os que têm a encomenda de libertar o possuído do seu pesar por meio do exorcismo. Mais recente pode ser o facto de que os espiritados, em lugar de se crerem afetados por um espírito dizem ser possuídos pelo demo. Acho que dito fenómeno deve-se a um EAC quer espontâneo quer produzido pelo jejum, ao que se submetem aquelas pessoas doentes e encamadas. É muito conhecido o Santuário da Virgem do Corpinho em relação aos exorcismo que lá se realizam.

Vedoiros: Batizados com o óleo dos mortos por equivocação, os vedoiros podem ver as ânimas, assim como o lugar que ocupam no Além. Aliás dão notícias de cousas perdidas, de tesouros ocultos e têm também a capacidade de avisar quem vai morrer. O vedoiro é de novo um personagem que como o xamã tem estas capacidades empregando o seu poder “sobrenatural”




Sábias e sábios: São bem-feitores que por dom, tradição ou qualquer tipo de aprendizagem chegaram a esta “categoria”. O seu labor é curar doenças mas também têm a capacidade de ver o futuro e adivinhar cousas relativas a quem estão longe. O seu método de cura é mágico ou mágico-religioso. Por meio de pedras, amuletos ou ervas pode curar o mal de olho, tirar os demos do corpo, os ares (maus os ruins), etc... Temos novamente paralelismos com os xamãs bem-feitores shuar, os iwishin, tsutákratim que eliminam as tsentsak (lanças mágicas dos xamãs malfeitores ou wawékratim) por meio da sua aspiração. Em qualquer caso é comum a luta de xamãs bem-feitores contra os malfeitores, assim como a curação por parte dos primeiros, das pessoas afetadas pelos segundos. Foi famoso o caso da Sábia de Torbeu que entrava em transe extático e punha-se a ladrar como um cão. Seguidamente passava a atinar tudo o que se lhe perguntava.




Mencinheiros e curandeiros: Costumam empregar plantas para curar as doenças. Temos que diferenciar desta categoria aos compoedores já que a sua especialidade são os ossos. Cumpre salientar o caso recolhido por Tomé Martinez na sua “Galicia Secreta”, dum mencinheiro. Este empregava faz poucos anos a Amanita Muscária para entrar em transe. Provavelmente, este fungo era empregado em tempos recentes por mais mencinheiros do País. A Amanita Muscária é um fungo que tem fortes efeitos enteógenos, desde provocar a visão dos fosfenos até ter a sensação de estar a voar. A Amanita Muscária foi empregue pelos xamãs siberianos e inclusivamente o antropólogo Josep M. Fericgla fala do seu consumo até épocas recentes em Catalunha. O emprego deste enteógeno, pelo mencinheiro pode ser interpretado como um método de curação já que os xamãs denominam muitas vezes os enteógenos como medicinas, como é o caso do Peiote na igreja nativa Americana. Este fungo recebe a denominação em Galiza e nalguns casos como “o pão do demo”, nome que pode ser revelador já que os aztecas tinham um sacramento enteógeno denominado Teonanácatl (pão dos deuses, literalmente). Trata-se, tal e como se descobriu o século passado do fungo enteógeno Psylocibe Cubensis. Isto pode nos levar à possibilidade de pensar que a Amanita Muscária quiçá fosse antes da chegada do cristianismo um “pão de deuses” para depois se reconverter em “pão do demo”. Quando os cristãos chegaram a América consideraram os enteógenos como substâncias demoníacas.  Mesmo existe um caso na Galiza dos anos 90 dum cura que proibia aos seus fregueses ingerir qualquer tipo de fungo sob pena de excomunhão, não sabemos se por conhecimento dos seus efeitos enteógenos ou por pura micofobia.





MITOLOGIA

A Mourindade: A voz latina “MAURUS” procede segundo o filólogo Isidro Millán do celta “MRWOS”. Os “Mouros” procedem portanto dum termo que designa os mortos. A pesar disto, temos que ter em conta que os “mouros” são na mitologia galega um “povo mágico”. Este povo tem um habitat subterrâneo, ocupando as profundidades dos megalitos, castros e covas. Os “mouros” são gente possuidora de grandes tesouros, poderes sobrenaturais e abundantes recursos de subsistência. Em algumas ocasiões podem ser benéficos e em outras maléficos no que diz respeito aos homens mas isto vai depender dos desígnios que o homem ou a mulher ocultem, assim como da moral que apresentem. Podem partilhar importantes tesouros com os homens sempre que estes não sejam avarentos e cumpram o que o mouro lhes diz, pois se for o contrário pode haver um desenlace pouco desejável. No mundo da mourindade o tempo é distinto do nosso. Uns minutos na terra dos mouros pode supor anos no mundo superior do homem.





Penso, portanto, que a mourindade se corresponde com o mundo inferior segundo a estratificação em três níveis que costumam fazer os xamãs. No seu caso, a viagem ao mundo inferior está relacionada com uma viagem ao Além, à terra dos mortos. E se os “mouros” são os “mrwos” celtas, são portanto os mortos da nossa mitologia que ocupam o “inframundo”. Como apontamos no capítulo anterior, os EAC propiciam uma conexão com o inconsciente. Portanto os seres que apareçam podem perceber facilmente os desígnios verdadeiros da pessoa, a sua moral que se monstra tal qual é. Talvez seja por isso que é necessário fazer alarde duma moral adequada para se beneficiar dos tesouros dos “mouros”. Uma vez que se acede ao seu mundo produz-se uma alteração temporal e o mesmo fenómeno produz-se por meio da experiência dum EAC no que o sujeito percebe uma modificação do espaço-tempo. Durante este transe extático, o xamã, costuma atravessar o túnel que o desloca ao mundo inferior. O seu reflexo no mundo material seriam as covas e os dólmenes (esqueuomorfos). Uma vez se chega ao mundo inferior da mourindade, poder-se-á aceder aos tesouros que oculta se os “mouros” são benévolos. Poderes sobrenaturais, visão dum mundo maravilhoso...novamente nos lembra a uma experiência de transe extático. Se a viagem foi sucedida, aquele que se adentre neste mundo poderá voltar com os seus tesouros, aqueles que se acham nas profundidades da mente humana
Há que mencionar aparte a “velha moura” (a do arco-da-velha, a que peneira), as mouras das fontes... já que se pode tratar de reminiscências de deidades pagãs.

Lobisomens: Na nossa mitologia existem uma série de pautas que supõem que uma pessoa se possa converter em lobisomem. Muitas vezes a transformação vem dada após a maldição proveniente de algum dos progenitores mas também se produz por ser o sétimo ou nono irmão do mesmo género, por meigalho ou por ter nascido na noite de Natal ou na sexta-feira santa. Em alguns casos, aquele que se converta em lobisomem pode possuir uma pelica de lobo, sendo lobo quando a põe e humano quanto a tira.





Os guerreiros e xamãs de alguns dos antigos povos indoeuropeus acreditavam que tinham a faculdade de se converterem em lobisomens após realizar algum tipo de ritual. Entre os povos celtas, também se dava este facto entre os guerreiros que após a sua transformação desencadeavam uma fúria sobre-humana. A representação conserva-se na coleção da Real Academia espanhola da História.

Cumpre salientar o caso dos guerreiros Berserker, guerreiros viquingues que combatiam com uma pelica de lobo. Afirma-se que provavelmente os Berserker consumissem Amanita Muscaria para desencadear a transformação em lobisomens. Estes guerreiros viquingues semearam de terror lá onde apareciam e mesmo entre companheiros eram temidos. Alguns mesmo chegavam a afogar por se deitarem à agua desde os seus “drakkars” antes do desembarque com o desejo de entrarem em batalha quanto antes.




A figura do xamã também é objeto de transformação. Se nos retrotraímos ao anterior capítulo vemos como o “bruxo” de “Les Trois Frères”, esse ser teriantrópico parece estar coberto por uma pelica que é sinal da sua transformação. Os xamãs sudamericanos dizem se transformarem em jaguar (lá onde os há). A transformação pode vir dada após se vestirem com a pelica deste animal. Se lembramos uma das condições para a transformação que reflexa na nossa mitologia, vemos que se cumpre quando o protagonista se cobre com a pelica do lobo. Portanto, aquele que porte este destino, tanto pode apresentar corpo humano como de lobo uma vez vestida a pelica.

Portanto, estamos novamente perante um fenómeno relacionado com um EAC em relação às práticas xamánicas, mas também guerreiras..

A sociedade do osso: Diz-se que aquelas pessoas que compõem esta sociedade secreta podem viver tanto no mundo dos vivos como no mundos dos mortos. Trata-se de pessoas com práticas similares às da Santa Companha mas em lugar de fantasmas de mortos são “fantasmas de vivos”. Um termo acaído para descrever estas pessoas pode ser a de “corpos astrais”. Uma prática comum dos xamãs é a faculdade de realizar viagens astrais. Ditas experiências são semelhantes às extracorpóreas ou próximas à morte na que o sujeito se vê fora do seu corpo. Em algumas ocasiões os xamãs podem fazer encontros em espírito, quer dizer, podem percorrer os mundos do Além e/ou do Aquém, mesmo fazer encontros mas não com o seu corpo físico, mas com aquela parte do seu corpo que não é material.





Ânimas, Aparições e Santa Companha: Na perspetiva tradicional que temos os galegos do mundo, é frequente o avistamento das ânimas. Em algumas ocasiões trata-se de ânimas que pedem ajuda a um vivo para solucionar um problema não resolvido na terra. Em outras ocasiões podem informar de soluções ou precaver sobre assuntos terrenais como avisar do movimento indevido dos marcos duma finca ou outros assuntos da vida quotidiana. Com respeito à Santa Companha trata-se da comitiva que percorre certos caminhos e que pode capturar um vivo que terá de ir na frente da mesma enquanto não tope outro que o releve.





A comunicação com os devanceiros, a visão dos espíritos ou entres similares é comum no mundo duma sociedade xamánica. Talvez possamos explicar ditas visões em tempos recentes botando mão dos EAC mas em outras ocasiões pode-se dever a interpretações feitas de certos fenómenos naturais.

Foi esta uma pequena resenha do que o chamanismo e os EAC implicaram tanto no nosso passado como no nosso presente. Podemos ver que certos factos do passado, difíceis de compreender, talvez possam ser interpretados desde esta perspectiva. Certamente, tanto no passado como no presente, o espectro da mente humana sempre há de jogar um importante papel em relação a certas manifestações. Cumpre ter em conta, portanto, os EAC relacionados com as práticas religiosas, mágicas ou rituais do nosso passado celta. Partindo desta base podemos fazer uma análise interpretativa que nos permita um maior achegamento à visão que os nossos devanceiros tinham da vida.




Mas também não é necessário olhar para povos ou tempos muito afastados para achar o fenómeno xamánico. Os derradeiros curandeiros, mencinheiros e meigas são o eco desse passado longínquo que esmorece por causa da inexistência dum relevo geracional. A nossa mitologia é também a recordação dessas aventuras levadas a cabo nos mundos que compõem esta realidade misteriosa e desconhecida que de vez em quando aparece subitamente sem sabermos muito bem donde provém. Sejamos pois conscientes deste facto e dignifiquemos essa parte que semelha afastada da nossa globalizada vida. Não permitamos que o legado ancestral esmoreça. Não no-lo podemos permitir...

sábado, 13 de agosto de 2011

A origem do xamanismo: de "Les Trois Fréres" às origens do cristianismo. 1ª parte





"Aguarda o inesperado. Se não o aguardas não o reconhecerás quando chegue"
Heráclito

Por David Outeiro

Os ocidentais tendemos a ver os xamãs como personagens pertencentes a comunidades pre-históricas ou lonjanas, gente  misteriosa e estranha que leva a cabo transes incompreensíveis. Sobre os xamãs do nosso passado, quiçá pensemos que já não temos nada a ver com eles, que a achega desta misteriosa gente esmoreceu para sempre. Neste artigo tentarei demostrar que isto não é assim, que para além de existir indivíduos com características xamánicas até tempos recentes, estes tiveram uma incidência considerável na nossa mitologia. Para isso teremos que fazer uma longa viagem, submergir-nos no escuro dos tempos e olhar a gênese da nossa espécie. Será necessário submergir-nos nas profundidades das covas franco-cantábricas na procura dos primeiros sinais, continuar a prestar atenção às pinturas do neolítico e aos petróglifos, investigar na vida druídica e nas práticas priscilianistas. Seguindo este velho caminho perdido no tempo que nos conecta com o passado mais remoto, chegaremos às portas do nosso século á beira da terra da fim do mundo. Será necessário também submergir-nos na profundidade da nossa mente, do inconsciente, da psicanálise,a bioteologia a neurociência... e ver o que nos podem achegar para vislumbrar este mistério. Deste jeito poderemos conhecer qual é a origem da magia, dos deuses, o contato com as ánimas, do caminho que leva ao mundo da mourindade, da origem dos pastequeiros, meigas, mencinheiros....Para isso será necessário meter-nos na profundidade da mente humana, esse grande enigma do que fazemos parte.


O termo xamã provém da linguagem evenki, na Sibéria. Emprega-se para designar àquela pessoa que tem a missão de estabelecer o contato com o além, com o mundo dos espíritos e desse jeito manter a coesão da sua comunidade quando for necessário. Só se entende este fenómeno no contexto duma sociedade xamánica.



O xamã encarrega-se de sanar a sua gente por meio de práticas mágicas ou plantas, de "negociar" com os espíritos da caça, de consultar com os devanceiros, de predizer factos e inclusivamente de defender a comunidade da que forma parte de xamãs malignos. Para isto será necessário que o xamã empreenda uma viagem ao mundo espiritual, ou melhor dito a um deles, posto que é um mundo que costuma estar estratificado. Habitualmente tal estratificação apresenta-se em 3 níveis; o mundo inferior, o meio e o superior.

Para o seu fazer emprega múltiplos objetos mágico-rituais como tambores, pedras, penas de ave, etc. O seixo, é por exemplo um elemento xamánico por excelência, relacionado com o além, aparece colocado desde o interior das grutas paleolíticas, passando pelos monumentos megalíticos e até sendo usado por curandeiros galegos na atualidade. Em função da missão, o xamã deverá lidar com os seres dalgum lugar deste mundo espiritual; lutar com os espíritos malignos, obter conhecimento dos devanceiros, lidar com os espíritos ou deuses da caça, etc...


Tudo isto na nossa "mente racional" pode soar a ciência-fição mas para compreender este fenômeno teremos que compreender o que a nossa mente nos pode trazer: os estados alterados de consciência que veremos mais adiante.

Retrocedamos agora a um tempo indeterminado no passado, esse momento em que o homem se fez homem como é atualmente. Nesse momento, deu-se um salto sem precedentes que nos levou a uma maior capacidade cognoscitiva. Quiçá subitamente, esse novo homem se deu conta da sua própria mortalidade. Para ele o mundo era um lugar caótico e a sua vida dependia da estreita relação com a natureza e os seus fenómenos. O vínculo com os animais de caça era inegável mas também dependia dos ciclos solares e lunares para poder caçá-los

Era imprescindível conhecer o curso das estações para a sobrevivência assim como ter em conta os fenômenos meteorológicos. Deveu ser dramático. Aquele homem antigo olhou em torno de si, á imensidade do céu ateigado de estrelas, começou a fazer-se perguntas. Quê é o que sou eu?, Quê é a vida, e que sentido tem? e sobre tudo: Que é o que há para além da morte e quê rege tudo isso?. Então o homem também começaria a cavilar se poderia intervir no seu mundo, controlar os fenómenos climáticos, viajar ao mundo dos espíritos, lidar com os seres que controlam a caça. Começou-se a dar um fenômeno que chamarei de seleção espiritual, quer dizer, aqueles indivíduos que acreditassem poder controlar o seu cosmos, que após a morte poderia aguarda-los uma nova vida, tiveram maiores possibilidades de sobrevivência. Isto contribuiu a reduzir a sua ansiedade e os indivíduos que tinham este planeamento em relação ao seu mundo tinham mais probabilidades de sobreviver.

Mostra de que existiu este fenômeno evolutivo é um gene descoberto pelo genetista Dean Hamer denominado VMAT2  que mantém que há certas pessoas com maior sentido da espiritualidade do que outras, pondo em marcha processos mentais que desembocam numa experiência espiritual (transcendência, dissolução do ego e união com o tudo, euforia, bem-estar, sensação de contato com o sobrenatural). Estamos a falar de que podemos afirmar a existência de Deus no nosso cérebro, que a nossa estrutura cerebral conta com regiões e mecanismos que têm relação com o fenómeno religioso.

Estudos recentes mostram aliás, que aquelas pessoas espirituais e religiosas têm uma melhor saúde tanto física como mental derivada dos benefícios das crenças sobrenaturais e a transcendência, o que supõe a diminuição dos medos e a ansiedade. Foi neste quadro do fenômeno evolutivo quando surgem os chamãs, aquelas pessoas especializadas em lidar com o mundo sobrenatural; os favorecidos pela seleção natural e os encarregados fazer a coesão da tribo, de equilibrar o mundo físico e o mundo espiritual, ou além.

Cumpre salientar, que no longo caminho da evolução humana, o cérebro não foi selecionado para atender a realidade e reproduzi-la com precisão. Ao cérebro simplesmente lhe interessou a sobrevivência. Essa é a sua meta evolutiva, e para isso cria todo tipo de elucubrações e discriminações com o fim de criar uma determinada realidade. Estamos a falar de que não existe uma única realidade posto que todo o que percebemos como exterior não é mais do que uma criação mental. Tudo surge do interior do cérebro, as cores, as sensações, as formas, as dimensões, as percepções...e tudo isto quer dizer que a realidade racional que procuramos é incerta.

Mas perguntamos: Como é que viajam os xamãs a esses mundos do além?. Quais as ferramentas ou vias que empregam? Ou mesmo são os xamãs pessoas fraudulentas?. É agora quando chega a procura imprescindível para conhecer a base que empregam os xamãs para se mexerem em outros mundos: os estados alterados de consciência. Começando pela compreensão da mente devemos ter em conta a mente consciente e a inconsciente. A mente consciente processa 50 bits por segundo, é a mente que cremos que rege a nossa vida e que pelo tanto nos faz "conscientes". No que diz respeito à mente inconsciente, que opera sem que a tenhamos em conta, processa 11.000.000 milhões de bits. Quer dizer, a maioria das nossas vivências, das nossas percepções, da nossa memória e dos mecanismos que incidem na mente consciente estão na mente inconsciente.

Carl Jung achou neste tipo de mente algo surpreendente: os arquétipos do inconsciente colectivo. Após estudar fontes de distintas culturas e distintos tempos ao longo do mundo observou que certos arquétipos como a serpe, o dragão, a morte, os "diabos", os círculos e os triângulos, a ave como símbolo de libertação e transcendência, o mito do herói e as peregrinações surgem do inconsciente sem saber o porquê. É no inconsciente onde se acha o mundo com o que o xamã terá que lidar e onde terá portanto o encontro com os seres espirituais. Mas para aceder ao inconsciente o xamã terá que desencadear um estado alterado de consciência. Para desencadear este estado existem distintos métodos: praticas extáticas, determinadas danças, técnicas de respiração, jejum, dor, cansaço, ritmos musicais ou enteógenos. Em relação ao tamborileio, podemos dizer que existem estudos que demostram que os hertz cerebrais podem ser modificados empregando um determinado ritmo durante certo tempo.

Sobre os enteógenos (manifestar a divindade em ti) ou psicodélicos (manifestar a mente/alma) consistem em distintas sustâncias naturais de plantas ou fungos principalmente que derivam num estado alterado de conciência. Entre elas podemos citar ao pejote, aiauasca, amanita muscária, psylocibes, datura e um amplo etcétera. Estas plantas ou preparados permitem ao xamã aceder ao inconsciente num estado alterado de consciência e portanto aos mundos do além. Provocam visões, dissolução do ego, sensação de unidade com o cosmos, experiências extracorpóreas, fortes emoções ...Apesar desta descrição dum estado alterado de consciência, aqueles que o viveram coincidem em que só o que os experimentou  sabe o que significam já que é inconcebível que seja imaginado num estado ordinário de consciência.
Algumas experiências são tão marcantes como a experiência extracorpórea ou viagem astral que consiste em que o indivíduo que a experimente se vê fora do corpo podendo ver-se desde fora de si próprio e tendo a possibilidade de ver que voa a outros mundos. Uma experiência muito conhecida é a das experiências próximas á morte (ECM) na que se descreve a visão extracorpórea, o túnel, a luz e finalmente o encontro com os "seres espirituais".
As ECM interpretam-se desde a neurociência como o resultado do bloqueio dos receptores cerebrais do glutamato, afirma-se também que se deve a atividade das últimas sinapses e que em tais momentos o cérebro liberta uma grande quantidade de endorfinas que propicia a sensação de grande bem-estar. No entanto, ainda ficam muitos enigmas por resolver com respeito a esta temática. Agora que temos em conta a origem neurobiológica das experiências místicas favorecidas pela seleção natural e os estados alterados de consciência como meio de acesso ao inconsciente podemos continuar com o nosso objeto de estudo.

Imaginemos uma cena acontecida no paleolítico superior; alguém se introduz nas entranhas da terra, dirige-se à profundidade duma cova na que não vive ninguém. Com uma pequena lâmpada de graxa vai profundando na escuridão, no silencio mais absoluto até chegar a um determinado espaço no que refletidas as suas visões...é um xamã. A cova representa o vórtice, esse túnel que se acha no nosso sistema neurológico e que manifesta o inconsciente num estado alterado de consciência. Após ter a visão do túnel chega-se a última fase do estado alterado de consciência no que começam as visões de seres e na que o xamã as vezes se transforma para controlar a caça. Às vezes, a privação sensorial que produzem as covas pode desencadear estes estados. É quando ao aceder ao mundo do além o xamã pode transformar-se num ser teriantrópico (características humanas e animais) e realizar algum rito mágico que influa nas peças de caça. 


O chamado bruxo ou feiticeiro de Les Trois Freres pode ser um exemplo desta transformação, do homem que intenta controlar os rebanhos de caça mediante técnicas mágicas. Alguns têm características aviformes, representando quiçá o voo do xamã ao mundo espiritual.  
Num longo período do paleolítico superior pintaram-se as más variadas cenas nas que aparecem diversas espécies animais que parecem flutuar, as vezes com pontos ao seu redor ou mãos impregnadas sobre elas. Os pontos bem puderam ser os fosfenos que se manifestam na fase 1º dum transe extático (estado alterado de consciência). Os animais aparecem aparentemente desligados do mundo sobrenatural ou flutuando, tal e como se manifestam num estado alterado de consciência. As mãos puderam ser uma representação da posse do animal por parte do xama. O cérebro desta gente era o mesmo que o nosso pelo que não é de estranhar que a pesar do tempo transcorrido pudessem desencadear visões semelhantes.

Milénios depois, já no neolítico, o homem começaria a construir monumentos megalíticos. Nalgumas ocasiões, estes monumentos semelham a representação artificial duma cova, um esqueuomorfo, reflexo novamente do vórtice que o xamã se passa numa das fases dos estados alterados de consciência dos que me pergunto se experimentariam no interior dalguns monumentos megalíticos. No interior das antas, aparecem em ocasiões certas pinturas como espirais, representações em ziguezagues, linhas etc que novamente nos lembram as visões que certas fases dum transe extático manifestam. 



Estas representações não carecem de sentido nem são meras representações das visões. O xamã dar-lhe-ia um sentido as suas visões em função do seu contexto. Um xamã Tucano em ziguezague denomina as representações como o pensamento do pai-sol.

Por volta da idade do bronze (ultimamente aponta-se a um período bastante mais amplo), os petróglifos galegos de estilo esquemático atlântico ou estilo atlântico poderiam representar novamente as experiências chamánicas. Espirais, círculos, estranhos antropomorfos e de novo animais, cérvidas em muitos casos. Os círculos e as espirais são comumente visíveis ao longo das distintas fases dum estado alterado de consciência. No entanto, em relação zoomorfos, provavelmente estejamos em muitas ocasiões perante representações mágicas, como nas que no paleolítico superior tentavam representar a influencia do xamã sobre as peças de caça. 


Ainda assim, os petróglifos galegos podem ter distintos significados mas penso que os xamãs tiveram um papel essencial em muitos casos na sua realização. Como podemos ver, no transcurso da historia, os xamãs e os estados alterados de consciência foram um contínuo. A pesar disto, com o transcorrer do tempo e ao se desenvolverem as sociedades mais complexas, o xamanismo seria parcialmente transformado e institucionalizado dando lugar ao sacerdócio. Nas sociedades célticas dito fenómeno é o druidismo; aqueles indivíduos que tinham um saber religioso, filosófico e incidência política mas que também conheciam as plantas enteógenas e experimentavam transes extáticos. Seja exemplo disto a localização em jazigos centroeuropeos de Canabis nas tumbas célticas. Cumpre nomear as pedras formosas, saunas que segundo alguns autores puderam ser empregadas para desencadear transes extáticos. O emprego de saunas é também comum nos ritos da Igreja Nativa Americana que emprega o pejote no seu culto sincrético atual.

Lembremos também, dentro do mundo céltico, as representações do caldeiro de Gundestrup. No caldeiro aparece o deus Cernnunos, um deus hasteado e da natureza, rodeado de animais numa cena que salvando as distancias faz-nos lembrar ao "bruxo" de Les Trois Fréres. 


De novo aparece um teriantrópico, um deus neste caso, que pode simbolizar a tentativa por parte do homem de controlar os animais. Neste caso está rodeado dum interessante contido simbólico. Outro exemplo é o diadema de Moñes, onde se representa uma cena relacionada com o além, onde estranhos seres portam caldeiros da regeneração. A cena desenvolve-se num âmbito aquático, outro dos lugares que podem visitar os xamãs num estado de transe extático, neste caso é necessário apontar a estreita relação que estabelecem os celtas entre o além e o mar. É interessante apontar, tal e como fizeram muitos autores, a importância que puderam ter os estados alterados de consciência na criação de arte de estilo céltico. 



É interessante apontar também que o xamã, por aceder ao inconsciente é uma pessoa que carga com certo "sofrimento" em favor da sua comunidade. O feito de entrar em transe extático ou xamanizar não sempre é uma experiência agradável. Este prezo que há que pagar por aceder ao conhecimento do além está representado no transcurso da historia e no planeta em múltiplas culturas. Todos aqueles que acederam a essa outra dimensão da mente humana, do inconsciente, sabem que ditas experiências nunca se esquecem. Quiçá seja por isso que Odín apareça na mitologia nórdica carente do olho direito mas conserva o esquerdo relacionado com a visão do além.

A respeito do lado esquerdo, aparece sempre vinculado a visão do além. Tal é o caso de aqueles que acompanhados de alguém que está vendo a Santa Companha só a poderão ver se o "vedoiro" lhe pisar o pé esquerdo. Alguns povos  celtas tinham por costume pintarem o lado esquerdo da cara durante o samhain para evitar visões aterradoras. 


Uma crença celta que cumpre apontar é a de que os guerreiros que "ressuscitavam" e voltavam do além ficariam mudos, quiçá precisamente por ter acedido a essa outra realidade. Quiçá seja por isto também, que no dia de santos ou samhain, quem ultrapassasse Portalém (no Monte do Seixo na Comarca de Terra de Montes) e fizera uma consulta as ánimas, ficaria com a voz rouca no caso de revelar os segredos do além. 


Era habitual que os povos Célticos representassem os crânios dos guerreiros vencidos sem boca, como sinal de que não voltariam e por pertencerem ao mundo do além. Nalgumas ocasiões têm-se achado crânios pertencentes a esta época de inimigos que se enterraram sen mandíbula, pelo mesmo facto anteriormente apontado.

Em relação aos deuses, nalgumas ocasiões representam-se com duas cabeças que olham opostamente, como sinal de influência no mundo dos vivos e no dos mortos.              
Por outra parte no mundo greco-latino empregavam-se as covas como meio de curação por parte dos pholarchos que permaneciam imóveis durante períodos prolongados á espera da chegada dos deuses. A chegada percebia-se como um zumbido relacionado com a serpe, símbolo iniciático e arquétipo do inconsciente colectivo mas esta curação, supunha a adquisição do conhecimento. Novamente entra em cena o estado alterado de consciência. Seria também neste âmbito cultural onde se realizariam os Mistérios de Eleusis. 
Inumeros estudos apontam ao emprego da cravagem do centeio a qual contém a dietilamida do ácido lisérgico(LSD). Com a chegada do cristianismo continuariam empregando-se enteógenos como sacramento, sendo substituídos pela hóstia e o vinho atuais na missa. Cumpre destacar que os priscilianistas foram acusados na sua época do emprego de psicotrópicos durante os ritos que realizavam nas arvoredas. Se é que Prisciliano bebeu de fontes druídicas, pode que os enteógenos empregados supusessem uma continuidade com respeito ao período anterior. A pesar da proibição por parte da igreja do emprego de enteógenos, assim como a perseguição do seu uso ritual, as práticas perpetuaram-se até hoje. Também o paganismo foi perseguido, como é obvio. Foi por isto quiçá, que o sacerdócio pagão ou druídico foi substituído pelo sacerdócio eclesiástico, mas isso não impediria que certas pessoas continuassem a praticar em certo sentido o xamanismo na Galiza. Como veremos no seguinte capítulo este fenômeno chegou até os nossos dias. Certas pessoas continuaram "xamanizando" em certo sentido até hoje e mesmo a visão xamánica deixou uma funda pegada nas crenças galegas...
 


Bibliografia:
"Los chamanismos a revisión" e "El hongo y la génesis de las culturas" de Josep M Fericgla
"Los chamanes" Piers Vitebsky
"El mundo de los druidas" Miranda J. Green
"Dios está en el cerebro" Matthew Alper
"El gen de dios"  Dean Hamer
"Los chamanes de la prehistoria" Jean Clottes e Lewis-Williams
"Dentro de la mente neolítica" David Pearce e Lewis-williams
"La mente en la caverna" David Lewis-Williams
"Arquetipos e inconsciente colectivo" Carl Jung
"Deuses,mitos e ritos do Monte do Seixo;unha interpretación en clave céltica" Rafa Quintía
"Petroglifos y paisaje social en la historia reciente del NO de la P.Ibérica" Manuel santos Estévez
Documentários de interesse;
Shamanism;Other worlds http://www.youtube.com/watch?v=wE0sDm5ba-4
DMT;La molécula espiritual http://www.youtube.com/watch?v=mOxhIGFj_gk
Del peyote al LSD;una odisea psicodélica http://www.youtube.com/watch?v=H0KDzTTz9zc
Piscotrópicos-Manifestando la mente http://www.youtube.com/watch?v=G2UoX8_ma7Y
Reportagens;
Carl Jung (sobre o inconsciente) http://www.youtube.com/watch?v=CtCI7VrlNuc
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