segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Algumas etimologias célticas: Bisbarra e Ourense




Por Higino Martins 

Bisbarra 

(bisbarra “comarca”, barra “vara”, “baixio”, barro “argila”, bairro“ "Sector urbano”, bairro“ terra caliça”) 

Coromines cria o galego bisbarra“comarca” de origem céltica e via-o composto de barra com outro nome incógnito ou com um prefixo, acerca dos quais formulou várias hipóteses.Barra, de semântica complexa, a meu ver é o célt. BARRO - “alto” (*bhars-o-), de vasta progénie. Como “(vara) alta”, “tranca para obstaculizar”, nota o valor original. De barra vem barreira “limite (feito de barras)”. Barra“baixio arenoso” foi “(areia) alta”. E barro “argila” alude aos lugares altos,verticais, donde se extrai, para evitar os alagamentos que a impermeabilidade dessa terra produz.No séc. VIII, o árabe vulg. bárri “externo, exterior” interferiu barra (Coromines cria-o étimo de bairro). E também o advérbio árabe barra “afora”, “substantivado em Argélia com o valor de campo (em oposição à vila )”. Isso decerto influi u, mesmo nas terras do Norte, pouco tempo dominadas. Do cruzamento, quase inextricável, testemunha bairro “parte da urbe”, como nota o outro bairro “terra caliça” (por barro). O cruzamento é provável em barra, não em bisbarra, que é do torrão mais imo. A base deste será céltica pura e significará “território”, qualquer que seja o jeito em que tal valor se articule com o de “alto”. Haveria barra “altura; altura central” com o harmónico de “pendor”, e daí “circuito”. Os cursos possíveis são vários e escassas as bases documentais, mas ao cabo cabe recordar ser usual designar um território a partir dos limites: comarca, contorno, arredores, distrito. Benveniste provou o latim regio, antes que “território”, ter sido o “ponto atingido por uma linha reta traçada na terra ou no céu ”. Além disso, a articulação dos sentidos “altura; altitude” com os de “profundidade” e “extensão” é conhecida e dispensa outras explicações. Se embarra retemos o valor de “território”, a questão do primeiro membro ou prefixo é menor. Pode ser um latino-céltico vīcī barra “território da aldeia”, mas parece melhor *W ĒKE-BARRĀ, composto bimembre puramente céltico, similar ao *WĒKEBRIGAIKO(N) “dos dos castro do clã”, da inscrição de Rairiz de Veiga. Portanto teríamos um “território do clã”. A sequência evolutiva seria *WĒKE-BARRA românico *vezebárra" βez’barra bisbarra, que foneticamente soa [bizbarra]. A proto-história da Galiza pega a desvendar-se. Eis justamente um dado interessante,sobretudo para as comarcas onde a palavra tem uso, como assinala Coromines. 

 Ourense

Atinamos na origem do bairro de Oira, que vem do frequente ORIA “a da fronteira (*OROS)”, que não é outro que nome céltico da vila. Já tem sido dito, mas talvez não de jeito claro, capaz de captar o imaginário coletivo. 
*ORIA (A longo; asterisco não pola palavra, pola aplicação a este lugar) caiu numa paretimologia ou etimologia popular polos achados áureos do Minho, que era fronteira tribal. Daí o *Aurea latino que também não está documentado, se não erro. O que aparece documentado é Auria, cuja subtil refração deu a pista. A evolução não concluiu. De Auria formou-se o adjetivo latino auriensis, donde Ourense
Deixo a hipótese para o final  Há quem pensa que a linguística é campo virgem, transitável alegremente com a intuição. Ou explica-se pola inércia da velha indefensão da cultura galega; distrai do estudo da identidade, faz irrisão do já feito, ousa ignorar os ditongos AU e Ou que historicamente sempre estiveram presentes. Não há nos léxicos do céltico antigo, nem nos neocélticos nada que tenha esse perfil.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Crónica das jornadas galego-portuguesas. Pitões das Júnias. 13-14 de maio de 2017


 
Cartaz autoria de Francisco Boluda: Foto Rui Barbosa
  Por Maria Dovigo e José Inácio Regueiro
 Começamos as jornadas com a apresentação a cargo de David Teixeira, vice-presidente da câmara de Montalegre, Lúcia Jorge, presidente da junta de freguesia de Pitões das Júnias, José Barbosa, um dos organizadores das jornadas, e Maria Dovigo, em nome da Academia Galega da Língua Portuguesa. David Teixeira destaca a universalidade do saber rural, Lúcia Jorge a continuidade das jornadas e o José Barbosa agradece a todos, organizadores e participantes, o facto de fazerem possíveis as jornadas.
As palestras começam com a intervenção de Íria-Friné Rivera, historiadora da arte e fotógrafa, atualmente a fazer uma tese sobre a teoria estética de Vicente Risco. A sua apresentação, “Celtismo, o amanhecer da estética moderna galega”, demonstra a centralidade do celtismo na criação duma estética galega, com a figura central de Vicente Risco como teórico e o trabalho de Camilo Díaz Balinho como artífice duma iconografia celta e galega consolidada. Ajuda a percebermos a arte do começo de século de temática céltica, as relações entre os inteletuais da época e a expressão artística, percorrendo trabalhos de Camilo Diaz Balinho, Asorei, Uxio Souto, Urbano Lugris... Com muito atino faz que os nossos olhos percebam os pormenores das obras e o conjunto, já não só da tela ou escultura, mas também da história e as suas ondulações no mar da cultura no tempo anterior à guerra civil espanhola. A apresentação abrange também trabalhos atuais, como o conjunto escultórico criado por Isaac Díaz Pardo no entorno da Torre de Hércules na Crunha ou a media-metragem de animação de Miguelanxo Prado De profundis.
Joám Evans Pim, formado em jornalismo e antropologia, académico da AGLP, com a sua palestra “Ogham: apontamentos sobre uma escrita galega”, convida-nos a questionar o nosso conceito de escrita como transliteração, transcrição fonética da linguagem articulada, e abri-lo a outras escritas não linguísticas, como o Ogham irlandês, as marcas poveiras da costa atlântica, da Póvoa de Varzim e da Guarda, as talas de Rio de Onor e Múrias de Rao. Estes outros tipos de escrita são igualmente registos de informação. Relembra que o conceito convencional de escrita foi criado no contexto do colonialismo e que foi fundamental para consagrar a ideia duma rutura histórica com a emergência da escrita que marcasse uma fronteira definida entre os povos civilizados e os povos primitivos. Desde o início da consagração deste paradigma as descobertas de conjuntos de arte rupestre demonstravam que os povos primitivos tinham consciência histórica. Esta conceitualização não convencional da escrita permite-nos ver, ou ler, o território galego como um território coberto de signos.
Francesco Benozzo, professor na Universidade de Bologna, etnofilólogo, figura destacada do paradigma da continuidade paleolítica, apresentou Speaking australopithecus. A new theory of origins of humam language, livro que escreveu conjuntamente com Marcel Otte. O livro sustenta a tese de que a linguagem humana apareceu com o Australopithecus, há 3 ou 4 milhões de anos, e não com o Homo sapiens, como Chomsky e outros destacados linguistas defendem.
Comemos em convívio, bacalhau, feijoada. Aqui, a Espanha, apenas a cinco quilómetros em linha reta, já fica longe. O “mundo real” é algo que entra pela tevê. Enquanto comemos, a janela aberta ao velho paradigma do país e os seus mitos fundacionais, impacta-nos com imagens continuadas do Papa e Fátima. Mas não sei polo quê, será polo nevoeiro que envolve hoje estas montanhas, que as gentes semelhamos impermeáveis.
Vai um chisco de fresco, a pedra emergida da entranha desenha o horizonte sul em cinzas variadas. A aldeia está recolhida sobre si.
Começa a tarde.
A palestra de Joaquim Pinto, investigador do Centro de estudos de Filosofia da Universidade Católica de Lisboa, “Ética espiritual celta: valores intemporais para tempos atuais”, propõe a reflexão sobre os eixos éticos que sustentam a tradição celta e como eles poderiam contribuir para o destino da humanidade. Joaquim fala-nos da ideia de comunidade definida pela partilha de um sentido comum, dos princípios de Verdade, do Bem e do Belo, entendidos de maneira dinâmica, com necessidade de serem atualizados no mundo da sustância, apontando para o outro mundo, as transcendências da Liberdade, do Amor e da Felicidade. Falou-nos ainda da atualidade em que as tecnologias, especialmente a televisão, acabaram com a tradição comunitária da lareira, provocando a clausura humana e a desterritorialização. Tudo é feito para não precisarmos do outro e para destruir a noção da reciprocidade. O homem teve de ser dividido para se apoderarem dele.
As intervenções acabam com uma mesa debate sobre a atualidade do celtismo em que intervêm os três palestrantes e o P. Fontes. Fala-se do celtismo como espaço de reconstrução das relações internacionais da Galiza, relações seculares e ancestrais interrompidas nos últimos séculos e recuperadas com esforço pelo galeguismo dos anos 20. Fala-se também da noção de herança, da nossa capacidade de darmos outros sentidos à nossa cultura, do problema da desertificação dos nossos territórios, do modelo da civilização rural tradicional frente ao modelo da urbs romana como questão central do celtismo, da continuação da resistência, dos nossos povos como indígenas da Europa, dos baldios, as comunidades de montes, a posse da terra do modelo céltico, do estigma da civilização rural, dos perigos da turistificação e o medo a vermo-nos como algo que pode acabar num museu.
Anoitece. No eiró, a aldeia prepara um lume de cepos velhos que arderão a noite toda dando aconchego e calor às gentes visitantes.
Dentro do local da junta
de freguesia é momento para a música com a voz e as harpas de Francesco Benozzo. Acompanhado da harpa céltica e da harpa bárdica, Francesco oferece-nos canções tradicionais da Bretanha, das Ilhas Britânicas, do norte da Itália e também galegas. Prossegue o convívio, uma churrascada popular, na que também não falta uma cunquinha de caldo quente.
Domingo, céu limpo. Juntamo-nos para irmos conhecer a aldeia abandonada do Juris, castro habitado até bem entrada a Idade Média, e o carvalhal de Porto de Laja, antigo nemetão céltico. Descemos por um caminho calcetado, com augas cantareiras que acompanham a música do cuco, do papa-figos.... Carvalhos, pedra, musgo, gesta florida. Na aldeia, a Lúcia oferece-nos um retrato vívido da cultura comunitária e como a autoridade chegou, mandou e dividiu.

Durante o jantar a conversa animada entre todos, os assíduos das jornadas e os que vêm pela primeira vez. Discute-se sobre a história e as pesquisas de cada um e sobre a vida atual das nossas comunidades. As despedidas prolongam-se no tempo de no espaço para podermos desfrutar até o último minuto o prazer da companhia, dos amigos de outros anos e dos novos amigos que de seguro vamos ver novamente no futuro mas que por enquanto deixamos para baixarmos novamente aos infernos do dia a dia quotidianos, inçado de tópicos, de falsidades, de mentiras que nos fazem consumir como a “realidade”. Longe das montanhas do Gerês está o Portugal de todos os dias e a Espanha que nos mata. Lembramos ao Santo Ero de Armenteira que quando chegou de volta já tinham passado trezentos anos. Será que nos vai acontecer o mesmo ao baixarmos o Monte do Pisco achando à nossa chegada um mundo onde não nos conheçam? Talvez ao abrirmos os olhos nos vejamos rodeados de quem nos quer trazer ao “mundo real”? Vamos ver…. Porque depois deste sonho, tão real vamos ter vontade de ficarmos no paraíso. Os adeuses não são adeuses, são um “até para o ano e daqui a lá, muitas vezes”.
Abu Gaels!!
Que assim seja.










quarta-feira, 10 de maio de 2017

Interview with Prof. Francesco Benozzo: “Galicia and North Portugal are the origin of European Celticity”




[English version]
(by Xoan Paredes)
Professor Francesco Benozzo (Modena, Italy, 1969) is one of the big names behind the Paleolithic Continuity Paradigm, claiming that the there is a clear continuity in the origins and development of European peoples, origins which may also be placed further back in time to what it is commonly considered. This shift in the understanding of European archaeology, prehistory and linguistics is of the utmost relevance for Galicia and (Northern) Portugal, as it sets this territory at the centre of the genesis of the so-called Celtic Culture, among other aspects.
With two PhDs in linguistics and philology by the universities of Bologna (Italy) and Aberystwyth (Wales), he currently lectures at the former Italian university. However, Francesco Benozzo is not limited by the formalism that usually accompanies academic life. He is also an acclaimed poet and harpist, with a large number of published works and music, leading to his name being proposed for a Nobel Prize in Literature.
We will be most fortunate to welcome him this coming April (2-3) in the fifth edition of the Jornadas das Letras Galego-Portuguesas (Pitões das Júnias, Montalegre, right at the Galician-Portuguese border), where he will be discussing these and many other topics, as outlined in the following interview.
- What was the first thing that got your attention about Galicia and North Portugal? Was it something purely academic or was there any other factor that made you focus on us?
Since I was a child my instinct suggested that the original meaning of things lies in peripheral areas and locations. I don’t just mean “peripheral” in a geographical sense but, mostly, in a poetic one. This is one of the reasons why I went to live to Wales (and not England) for a few years, and it is also the reason why I left my hometown of Modena, in Northern Italy, and decided to live in the mountains. I also believe that, as academics, we must study and concentrate on “peripheral” traditions: folk traditions, dialects, oral texts, cultures of the marginal people and so on, because what is now perceived as “marginal” and “peripheral” was, in many cases, the original centre of what we currently perceive as being at the centre.
Galicia and North Portugal have always been part of this “poetic topography” of mine and of my poetic conception, starting from their legends and traditions, and from great poets such as the medieval troubadours, to even Rosalia de Castro or Eduardo Pondal.
- Do you think that the Iberian north-west can be considered the origin of "Celticity" in the Peninsula from a linguistic point of view?
Not only. I think that it can be considered the origin of Celticity in all of Europe.
- What is your opinion on the relationship between the Celtic world and Tartessos, as Prof. Koch postulates?
John [Koch] has produced an extraordinary work in the last decade about that. I don’t see any linguistic reasons that could deny this postulated connection. The problem with Koch’s theory is that it limits itself to the late Bronze Age, which comes in contradiction with his idea of “Celts from the West”. If we speak of ethnogenesis instead, we must go beyond the restrictions of written sources and have the ability to connect them with other sorts of sources such as legends, traditions, genetics, ethnotexts or dialectal lexicon. Consequently, we'll be able to speak of “Paleolithic Celts” for this area. Within this framework, Tartessos can be seen as one of the many “recent” written relicts of a much older situation.
- Why do you think there is this renewed effort in some parts of Europe to debunk the term "Celtic", or even the existence of a Celtic culture?
For three main reasons. Firstly, being myself an anarchist, I would say that there is an innate tendency of those in power to exclude diversity and, above all, to “centralise” any kind of strategy connected to their power. Thus, as we know, since their proto-history the Celts have always been the “losers” in geopolitical terms, and have then been excluded from any power play of the European elites.
Secondly, we can find a general discomfort with Celticity if compared to the official and standardised cultures which, in a way, rule the world. In other words, to admit that the many-sided, coloured, rural, disquieting, stratified, archaic Celtic culture can be part of us is, in many cases, difficult to accept for people raised with the certainty and the conformist myth of stability and with a superficial knowledge of European history.
Lastly, and in connection to the above-mentioned reasons, Celtic culture represents, in psychoanalytic terms, the subconscious of Europe, which causes a continuous attempt to repress and suppress it.
- As an accomplished researcher, but also poet and musician, is there any connection between your academic work and your artistic work? Or do you keep both worlds separate?
I hope that these three aspects live together, as it happens with different elements of a same landscape. My expectation is probably to look like a musician who studies philology, a poet who plays the harp, and a philologist who composes poems.
- After all your travels and research, how would you summarise the "Celtic character"? For example, when you come to Galicia-North Portugal, what do you feel in connection to other Celtic territories?
First of all, there is a special feeling with the sea, which is different from the one I have observed in other communities such as the Faroese or Mediterranean ones. In Celtic lands this feeling is linked to a “legendary” and melancholic attitude in perceiving the landscape and seascape, and the capacity to connect places with stories. There is also a clear, innate, not predictable, musical perception of the world. Furthermore, there is the consciousness of the archaic and civilising value of things that have been forgotten elsewhere, such as the sharing of drinks, food and stories.


At the V Jornadas das Letras Galego-Portuguesas, Prof. Benozzo will give a presentation entitled “A prehistoric Atlantic landscape. Paleo-mesolithic ethnogenesis and ethnophilology of the Galician and Portuguese traditions.
The event is free and open to the public. Prof. Benozzo's talk with be in English with translation into Portuguese.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

VI Jornadas galaico-portuguesas de Pitões das Júnias





Sábado 13 de Maio
1º Painel: Apresenta Maria Dovigo

  • 10:00: Presentação
  • 10:30: Iria-Friné Ribera: Celtismo: O Amanhecer da estética moderna galega
  • 11:30: Joam Evans: Ogham: apontamentos sobre uma escrita galaica 
  • 12:30 : Francesco Benozzo: Apresentação do livro “Speaking Australopithecus. A new theory on the origins of the human languages” (Francesco Benozzo & Marcel Otte)
  • 13:30: Comida


2º Painel: Apresenta Maria Dovigo


  • 16:30: Joaquim António de Jesus Palma Pinto: Ética Espiritual Celta: valores intemporais para tempos atuais”
  • 17:30: Mesa redonda: "A utilidade socio-económica do Celtismo na Galiza e no Norte de Portugal“
  • 20:00: Música: Francesco Benozzo."Uma viagem atlântica. Música desde as fronteiras célticas" (voz, harpa céltica e harpa bárdica)
  • 22:00: Churrascada popular


Domingo 14 de Maio


  • 10:00: Visita à aldeia desabitada de Juris (Castro habitado até a bem entrada a Idade Média) e ao Carvalhal de Porto da Laja (Antigo nemetão céltico).
  • 13:00: Clausura
  • 14:00: Comida de Irmandade

    Participantes:
    Sra. Doutora Maria Dovigo, Academia Galega da Língua Portuguesa
    Sra. Dra. Íria-Friné Rivera, Universidade da Corunha
    Sr. Dr. Joám Evans, Academia Galega da Língua Portuguesa
    Prof. Doutor Francesco Benozzo, Universidade de Bolonha / Candidato a Prémio Nobel
    Sr. Doutor Joaquim Palma Pinto, Centro de Estudos de Filosofia (UCP) / ATDL


    Aqui podem fazer reservas para comidas e dormidas nas Jornadas
    http://www.casadopreto.com/

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Uma atitude razoável



Por Paulo Soriano


Há um conto que começa assim:
Eu tenho um animal curioso: metade gatinho, metade cordeiro. É parte da herança de meu pai. Em meu poder, ele se desenvolveu completamente. Antes, era mais cordeiro do que gato. Agora é meio a meio. Ele tem do gato a cabeça e as garras; do cordeiro, o tamanho e a forma. E, de ambos, os olhos, mas agitados e selvagens, assim como os pelos, macios e rentes ao corpo. Os seus movimentos são saltitantes e sorrateiros. Ao sol, no peitoril da janela, enovela-se e ronrona. No campo, corre como um louco e ninguém o alcança. Ele foge dos gatos e procura atacar os cordeiros. Nas noites de luar, apraz-lhe passear sobre as canaletas dos telhados. Não sabe miar e abomina os ratos. Ele passa longas horas espreitando o galinheiro, mas jamais aproveitou uma oportunidade para matar...
O conto foi escrito, em 1917, pelo escritor morávio, de expressão alemã, Franz Kafka. Nele, o brilhante contista retrata a angustiante condição de quem padece do hibridismo, mescla que leva à absurda situação em que qualquer tentativa de identidade é impossível e, ao final — veremos — imensamente destrutiva. Mas, não nos antecipemos. Juntos, voltaremos ao conto de Kafka mais tarde.
Soube por meio de meu amigo José Manuel Barbosa, de uma entrevista ao sociolinguista espanhol Henrique Monteagudo  — que é profesor de Filoloxía Galega na Universidade de Santiago de Compostela e Secretário da Real Academia Galega — publicada no sítio Quilombo Noroeste. Leia aqui. Cá, falo algo sobre o que, como brasileiro e lusófono, penso acerca do que disse o súdito de sua Majestade.
Não hei de resumir a entrevista concedida pelo escudeiro de El-Rei. O leitor pode lê-la na íntegra no sítio acima indicado. Digo, apenas, que o senhor espanhol parece muito pouco fiel à sua língua de nascença (sim, o senhor Monteagudo nasceu não em Madri ou em Sória, mas na Galiza!), quando, tomando por castiços, emprega termos canhestros como a respecto ou por suposto, utiliza uma conjugação verbal de causar arrepios (aínda que parece estar), troca — e sem trocadilhos, leitor! — “trocar” por “cambiar” (as cousas cambien), e ainda se digna a debuxar (o filólogo conhece com certeza o verbo desenhar, mas, como bom feudatário espanhol, prefere o galicismo tão comum e caro ao seu suserano franco-castelão) os caminhos nos quais o galego deve seguir doravante...
A um valete assim tão fiel, a um funcionário tão sensível, seria possível imaginar o galego como uma língua internacional? Já lhe não basta e sacia um galego que, para a alegria de Castela, não é carne e nem é peixe? Nem gato, nem cordeiro, mas, ao mesmo tempo — e tragicamente — gato e cordeiro? A quem interessa o insulamento da Galiza? A quem interessa um galego castrapo? A quem interessa a normativa castelã, que tanto estorva e empeça a comunicação escrita da Galiza com as demais nações lusófonas?
O real acadêmico assegura que, falando galego em suas palestras a ouvintes brasileiros, a intercomprensión mutua é moi doada e esixe pouco esforzo. Concordo com ele. E vou além. Digo, por experiência própria, e bem fecunda, que o mesmo acontece quando um brasileiro palestra na Galiza (de Oeste a Leste da Galiza, e vice-versa, em verdade). Mas ele alega que a comprensión espontánea do discurso en galego tamén me ten acontecido ante públicos hispanófonos. E por que não? Por que seria diferente, se a fala vem de um filólogo que se esmera em escrever galego na ortografia espanhola; substitui, e sem necessidade, os termos castiços por vocábulos e expressões profundamente castelãos; viola — e rudemente — do galego elementares vozes de conjugação verbal?
A reação do sociolinguista espanhol ao reintegracionismo era-me bem esperada. Nada a dizer. Não vou malhar em ferro frio. Neste sentido, devolvo — e bem devolvido, já que não sou espanhol, mas brasileiro — a ele, coa mesma moeda, o sexo dos anxos.
Quanto a nós, brasileiros, estamos bem (e muito bem, obrigado!) na companhia de Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Castilho, Fernando Pessoa, António Vieira, Florbela Espanca, Gil Vicente, José Eduardo Agualusa, Bocage, Antero de Quental, Miguel Torga, Mia Couto, Eça de Queiroz, Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Hélder, Almada Negreiros, Almeida Garret, Sá-Carneiro, Camões...
Não, amigos, os brasileiros não precisamos de secessão alguma. Nem de norma brasileira autônoma qualquer, o primeiro e decisivo passo àquela ruptura indesejada. Amamos a nossa língua como ela é, com todas as suas variedades, cores, sabores e gradações. E ela é a língua portuguesa. Esteja ela onde estiver, mesmo que — e talvez por melhor motivo — acima do Minho, nós a amamos.
Ela, e somente ela, é a nossa Soberana.
Mas, será que não concordo em nada com Monteagudo? Concordo sim! Já o esbocei um pouquinho lá em cima. E, um bocadinho mais abaixo, devo concordar plenamente com que o que disse o sociolinguista espanhol:
Polo camiño que imos, o galego corre un serio risco de retroceso catastrófico e irreversible.
Com certeza! O camiño que ele apregoa, aqui no Brasil e alhures, não leva senão a uma triste e autodestrutiva conclusão. Ele — este tenebroso sendeiro, este caliginoso caminho — não é nada menos que aquele que nos diz o desfecho do conto de Franz Kafka:
...Acredito seriamente nisto. Ele tem em si tanto a inquietude do gato quanto a do cordeiro, embora estas sejam diferentes. Por isso, ele sente-se tão incomodado na própria pele. Às vezes, ele salta à cadeira de balanço, apoia as patas dianteiras em meu ombro, e toca-me o ouvido com o focinho. É como se falasse comigo. De fato, ele vira a cabeça para mim e me olha, observando o efeito que a sua comunicação produziu em mim. Para comprazê-lo, ajo como se o compreendesse, balançando a cabeça. Então, ele salta ao chão para brincar.
Talvez a faca do açougueiro seja um alívio para esse animal, mas ele é uma herança de família e, por isso, eu tenho que lhe negar o favor. Por isso, ele deve esperar até que deixe de respirar por si próprio, malgrado às vezes ele me olhe com os olhos da razão humana, exigindo de mim uma atitude razoável.
Sim... Uma atitude razoável...


terça-feira, 14 de março de 2017

Galiza, uma "Nacionalidade Histórica" que Madrid deconstrói




Por José Manuel Barbosa
Em 1916 nascem as Irmandades da Fala, primeira organização político-cultural da Galiza que definem e reconhecem o País como Nação e como “Célula de Universalidade”. Posteriormente o movimento galeguista com o seu árduo labor político e cultural conseguem para a Galiza o reconhecimento pela Sociedade de Nações, antecessora da ONU, da sua condição de Nação em 16-18 de setembro de 1933 em Berna. O político galego Plácido Castro achegou informação e documentação ao Congresso de Nacionalidades Europeias para que este organismo dependente da SdN considerasse a existência duma Nação no noroeste da península Ibérica manifestada num vida coletiva com umas caraterísticas distintivas e originais que a identificam historicamente e no presente como tal. O CNE reconheceu e determinou seguindo a legislação que adequação a direito era plena o que manifestava o direito a uma administração nacional própria e ao seu livre desenvolvimento como Nação com direito a ser assim reconhecida internacionalmente. Foi com isso que a Galiza é reconhecida legalmente como Nacionalidade em épocas contemporâneas por uma organização de reconhecido prestígio e autoridade internacional com o direito a dispor da sua vida e do seu futuro.
Irmandades da Fala
Poucos anos depois, em 1936, a Galiza vota por maioria de 99’24% de votos afirmativos contra o 0’76% de votos negativos e um 0’98 de votos nulos o seu primeiro Estatuto de Autonomia após ser-lhe negada a sua condição de Reino em 1833. O total de galegos com direito a voto em junho de 1936 foi de 1.343.135 dos quais votaram 1.000.963 e um total de 993.351 manifestaram a sua vontade de auto-governo materializado por meio dum Estatuto com competências em matérias legislativas, judiciárias, económicas com uma fazenda própria com capacidade impositiva e para arrecadar tributos, reconhecimento do seu direito histórico e dum governo com capacidade executiva. Infelizmente um mês depois, o golpe de Estado do General Franco aborta toda tentativa autonomista e de reconhecimento dum auto-governo para a Galiza. Esta “Longa Noite de Pedra” em palavras do poeta Celso Emílio Ferreiro dura até 1975, ano em que morre o ditador e se começa novamente a elaboração dum novo Estatuto. O segundo. Este foi elaborado e votado em dezembro de 1980 entrando em vigor em abril de 1981.
Plácido Castro
No segundo Estatuto acrescentam-se as competências reconhecidas em 1936 para além de lhe serem reconhecida a condição de Nacionalidade no seu artigo primeiro:
ARTIGO 1
  1. Galiza, nacionalidade histórica, constitui-se em Comunidade Autónoma para aceder ao seu autogoverno, de conformidade coa Constituição Espanhola e com o presente Estatuto, que é a sua norma institucional básica.
Isto posiciona à Galiza num contexto ótimo para ser reconhecida internacionalmente com todas as dignidades. Se a isto acrescentamos que o Reino da Espanha está incluído dentro do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos os quais fazem parte do Sistema dos Direitos Humanos da atual Organização das Nações Unidas (ONU) no qual se reconhece no seu artigo primeiro o seguinte:
PRIMEIRA PARTE
Artigo 1.º
1. Todos os povos têm o direito a dispor deles mesmos. Em virtude deste direito, ELES DETERMINAM LIVREMENTE O SEU ESTATUTO POLÍTICO E DEDICAM-SE LIVREMENTE AO SEU DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO, SOCIAL E CULTURAL.
2. Para atingir os seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo de quaisquer obrigações que decorrem da cooperação económica internacional, fundada sobre o princípio do interesse mútuo e do direito internacional. Em nenhum caso pode um povo ser privado dos seus meios de subsistência.
3. Os Estados Partes no presente Pacto, incluindo aqueles que têm a responsabilidade de administrar territórios não autónomos e territórios sob tutela, são chamados a promover a realização do direito dos povos a disporem de si mesmos e a respeitar esse direito, conforme às disposições da Carta das Nações Unidas.
Igualmente no Pacto internacional de Direitos económicos, sociais e culturais aprovados pela Assembleia Geral da ONU em 1966 no seu artigo 1.1 diz (1):
Artigo 1.1
PARTE I
Artigo 1º
§ 1. Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento económico, social e cultural
Igualmente no seu artigo 3º diz:
§3. Os Estados Membros no presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar territórios não autónomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autodeterminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.
Delegação galega que em 1933 conseguiu para a Galiza o reconhecimento como Nacionalidade pela Sociedade das Nações
Por outra parte a Constituição espanhola no seu Capítulo II: Sobre os tratados Internacionais diz (2):

CAPÍTULO III. DE LOS TRATADOS INTERNACIONALES.

Artículo 93.
Mediante Ley orgánica se podrá autorizar la celebración de Tratados por los que se atribuya a una organización o institución internacional el ejercicio de competencias derivadas de la Constitución. Corresponde a las Cortes Generales o al Gobierno, según los casos, la garantía del cumplimiento de estos Tratados y de las resoluciones emanadas de los organismos internacionales o supranacionales titulares de la cesión.
Artículo 94.
1. La prestación del consentimiento del Estado para obligarse por medio de Tratados o convenios requerirá la previa autorización de las Cortes Generales, en los siguientes casos:
a. Tratados de carácter político.
b.Tratados o convenios de carácter militar.
c.Tratados o convenios que afecten a la integridad territorial del Estado o a los derechos y deberes fundamentales establecidos en el Titulo primero.
d.Tratados o convenios que impliquen obligaciones financieras para la Hacienda Pública.
e.Tratados o convenios que supongan modificación o derogación de alguna Ley o exijan medidas legislativas para su ejecución.
2. El Congreso y el Senado serán inmediatamente informados de la conclusión de los restantes Tratados o convenios.
Artículo 96.1. Los tratados internacionales válidamente celebrados, una vez publicados oficialmente en España, FORMARÁN PARTE DEL ORDENAMIENTO INTERNO. SUS DISPOSICIONES SÓLO PODRÁN SER DEROGADAS, MODIFICADAS O SUSPENDIDAS EN LA FORMA PREVISTA EN LOS PROPRIOS TRATADOS O DE ACUERDO CON LAS NORMAS GENERALES DEL DERECHO INTERNACIONAL.
2. Para la denuncia de los tratados y convenios internacionales se utilizará el mismo procedimiento previsto para su aprobación en el artículo 94.
Documento administrativo da Sociedade das Naçoes pelo qual se reconhece a condiçao de Nacionalidade para a Galiza
Conclusão:
1- A Espanha está na ONU e aceita o ordenamento jurídico internacional.
2- A Espanha assinou o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos incluído dentro do Sistema dos Direitos Humanos da ONU. A Espanha assinou igualmente o Pacto internacional de Direitos económicos, sociais e culturais. Ambos tratados entraram em vigor em 19 de Dezembro de 1966.
3- A Constituição espanhola garante que a legislação internacional, nomeadamente a emanada da ONU à qual pertence de pleno direito, faz parte do seu ordenamento jurídico e portanto RECONHECE INDIRETAMENTE no seu artigo 96 o direito de AUTODETERMINAÇÃO dos povos ao serem estes tratados anteriormente citados (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e Pacto internacional de Direitos económicos, sociais e culturais) parte da legislação internacional à qual se vincula o Reino da Espanha, só podendo renunciar a ela derrogando-a, modificando-a ou suspendendo-a nas formas previstas pelos próprios tratados ou de acordo com as normas internacionais.
4- Se a Galiza (ou quaisquer outros territórios do Reino da Espanha) optar por exercer o seu direito de autodeterminação estaria de acordo com a legislação internacional que a Espanha aceita. Se o Estado ao que à Galiza pertence optasse por impedir, limitar ou obstaculizar esse direito, seria o Reino da Espanha o que estaria fazendo incumprimento a sua própria legislação e a legislação internacional dentro da qual se incluiu voluntariamente quando aceitou e assinou toda a legalidade emanada da ONU à qual pertence desde.
5- Se quaisquer outro Estado manifestar o seu apoio ao proceder do Reino da Espanha no que diz respeito a este assunto, estaria igualmente contrariando à legalidade internacional, sobre tudo se este Estado tiver assinado igualmente os mesmos tratados dos que falamos


















Galiza e Portugal: Cabeça e coração dum ser único




 Por José Manuel Barbosa

A definição de Nação tem dado muitas páginas nos livros de teoria política e mesmo nos livros de antropologia. É por isso por que há duas formas de perceber a ideia de Nação: a política que nos descobre um conceito de Nação próximo a ideia de Estado, daí a noção de Estado-Nação e vinculada à vontade; e a cultural, que nos leva a Nação constituída por um conjunto de pessoas com uma língua, uma tradição, uns usos culturais e hábitos psicológicos comuns, uns costumes manifestados na forma de perceber a vida tanto no laboral como no festivo, nas crenças ou na herança e numa história que une aos seus nacionais num determinado território reconhecido como próprio. Estas duas formas de perceber o que é uma Nação podemos identificá-las como da escola francesa, a primeira, e a escola alemã a segunda. Na primeira é a vontade dos indivíduos de construir a Nação que se comprometem numas instituições comuns que regulam a sua convivência. Esta vontade surge da sua livre eleição à hora de se constituírem ou bem pela sua separação duma entidade estatal já existente enquanto a segunda é o conceito de Nação objetiva baseada numa realidade viva localizada acima dos indivíduos e das vontades cuja identidade está sustentada em traços externos herdados duns antepassados comuns. Dessa realidade não é possível evadir-se por meio da vontade.
Se tomamos a primeira como referência, diremos que Portugal é uma Nação porque a vontade fez que fosse independente da Galiza medieval, porque os portugueses assim o quiseram durante mais de oitocentos anos desde a sua independência levada a cabo por Afonso Henriques. Da mesma maneira, a Galiza faria parte duma entidade político-administrativa superior denominada Reino da Espanha e à qual adere por inércia histórica. 
Mas se tivermos em conta o segundo conceito, a Galiza e Portugal fariam parte duma mesma Nação segundo os critérios de Fichte. Segundo eles tanto galegos como portugueses participam de uma série de elementos identitários comuns que os unem por cima de quaisquer diferenças políticas ou individuais. Podemos dar-lhe um repasse:

  • A Língua

A identidade da língua, considerada como uma única língua comum a galegos e portugueses pode vir identificada tanto do ponto de vista estritamente linguística como do ponto de vista político.
Se for a linguística a que determinasse a unidade da língua não teríamos ninguém que acreditasse na existência de duas línguas no ocidente peninsular ibérica. Tudo o que for identificado como diferença seria localizado como uma variação dialetal e/ou regional. Galegos e portugueses temos uma mesma língua sem qualquer dúvida e não há cientista que tenha a categoria para o negar. Rodrigues Lapa, Eugen Coseriu, Carolina Michäelis de Vasconcelos, Joan Coromines e todos os grandes vultos da filologia e da linguística reconheceram a realidade duma e única língua galega em origem e mas conhecida internacionalmente com o nome de português.

Há quem pense que nas últimas décadas a vontade dos galegos e das suas instituições é a de reconhecer a sua variante como uma língua “irmá pero diferente” da portuguesa mas essa vontade surge da necessidade de Madrid de desidentificar e separar ambas as variantes para favorecer a assimilação do chamado galego dentro do castelhano como um patois ou crioulo que pela sua debilidade e falta de prestígio não possa concorrer com a língua de imposição. E como já vimos que a vontade não é uma forma de conceber a Nação cultural mas o Estado-Nação, não devemos considerá-la. Ainda assim é de reconhecer que mesmo alguns dos personagens políticos mais importantes da separação linguística galego-portuguesa como o próprio Manuel Fraga Iribarne, Presidente da Galiza entre 1990 e 2005 reconheciam e falavam duma língua comum:

É um encontro a que nos chama a pertença geográfica a um mesmo espaço físico, a herança cultural de uma língua comum e um património cultural multissecular,….” (Fraga Iribarne: 1991)

A pesar disto ser assim, o velho político franquista dizia o mesmo pelas mesmas épocas mas para um público diferente:

É un encontro a que nos chama a pertenza xeográfica a un mesmo espazo físico, a herdanza cultural de línguas com raices comuns e un património cultural multisecular,...” (Fraga Iribarne: 1992)

A dia de hoje, o próprio e atual Presidente da “Xunta de Galicia” Alberto Nuñez Feijóo/Alberte Nunes Feijó manifesta o mesmo critério de unidade linguística galego-portuguesa nas Tv espanholas uma vez o movimento reintegracionista tem a suficiente força social como para pôr as cousas no seu lugar (1)

  • Hábitos psicológicos e forma de perceber a vida
Quando de um galego se diz que numa escada não se sabe se é que sobe ou é que baixa, é um castelhano que o diz. Um galego sempre sabe se sobre ou se baixa mas um castelhano desde fora nunca é que o sabe. Isto não tem maior transcendência se não fosse que a indefinição é um elemento identificativo de galegos mas também de portugueses; a ambiguidade, a diplomacia, a forma de dizer as cousas indiretas, as meias verdades, a “retranca”, esse humor no que nunca se diz o que se quer destacar mas que sempre fica evidente para as mentes inteligentes nada abundantes no centro peninsular…
É aquela história na que uma pessoa lhe faz uma pergunta comprometida ao galego e este responde:

Por uma parte, tu já vês, por outra….que queres que che diga mas o certo é que… quem sabe?”

Falamos igualmente do acordo e do trasacordo, essas variações de rumo que aplicamos quando a necessidade o requer perante uma decisão que temos de tomar mas que não temos toda a segurança. É o um “se por acaso...”, “Se calhar...”, “Nunca se sabe...”. Os nossos refrões fazem-nos visualizar essa caraterística psicológica:

Deus é bom e o demo não é mau”
Porque a Deus apreces, o demo não desprezes”

Mas sobre todos os elementos do nosso caráter comum está a saudade, cantada por poetas e descrita por filósofos. É uma forma de perceber a vida galega e portuguesa por excelência mas que inclui uma visão da vida romântica, lírica, poética e profundamente artística. Por isso é que a poesia lírica medieval faz parte da nossa identidade mais profunda.

  • As crenças, as tradições, usos culturais e costumes
Com certeza que se falo da submissão ao sobrenatural, à religiosidade profunda manifestada num conceito do transcendente que ultrapassa os sentidos e a razão, estou a falar da forma de ser dos portugueses. Mas também falo dos galegos que na sua festa da sua virgem, da sua santa ou santo, da sua romaria ao seu santuário, da festa da sua aldeia na que celebramos que esta divindade pré-cristão transformada em tal ou qual virgem nos faz comer a todos em família ou em comunidade. É a comida na que há que comer basicamente porco ou vitela como forma de manifestar a alegria comum.

Em Castela e em Andaluzia têm por costume beber vinho e bailar mas não não bebemos nem bailamos enquanto não tenhamos a barriga cheia. Só isso, prémio ao nosso trabalho do dia-a-dia, é o que nos põe contentes perante os demais: comer, e comer comida forte, hipo-calórica, poderosa, que mantém corpos que devem ser fortes porque historicamente é a terra a quem lhe devemos o esforço para que ela nos dê frutos. Para além disso, as filhós, as rabanadas ou torradas, os roscões ou pães de ló, as sopas de cavalo cansado, os cozidos, o polvo, o caldo, todo tipo de enchidos, presuntos, broas, pães de centeio, papas, etc…são as formas dos nossos alimentos que reconhecemos em ambas as beiras da raia…

Por outra parte, a cultura histórica também vincula com as crenças de galegos e portugueses de hoje. Somos a terra do granito que suportou antas, mamoas, pedras escritas, montes sagrados onde habitam ainda hoje as divindades esquecidas que um dia estavam nas nossas vidas e hoje dormem até que decidam acordar. Mouros, princesas com pés de cabra, cobras que acabam sendo princesas, seres feéricos de todo tipo e tamanho, seres mitológicos que vivem nos contos infantis mas também nas nossas vidas quotidianas, o não varrer para fora, o arco-íris que é o arco-da-velha porque a velha é a Terra que nos deu vida e é a matriz de todo, as nossas festas que cobrem todo o panorama festivo céltico: Magusto/Samhain, festa dos mortos onde estes vêm comer à nossas mesas, Ciclo de Natal/Solstício de inverno, quando celebramos o nascimento da luz; Carnaval e Candelária/Imbolc quando casam os passarinhos mas também crítica ao poder; Máias ou Máios/Beltaine quando com lume queimamos o boneco verde e chega o verão; São João/Solstício de verão quando celebramos o triunfo da luz por meio do fogo purificador…..
As bruxas e meigas, o Além, a morte, os que veem o futuro, Todo isso e muito mais somos os galegos e os portugueses e não nos reconhecemos como unidade porque desde há bem poucos anos o direito ao ensino faz que sejam os Estados-Nação os que transmitam a cultura e a educação mas essa não é natural mas artificial qual comida de lata ou hambúrguer de McDonals. Esse direito não é o mau, que é um direito, mas é o Estado que desrespeita os povos e as suas raízes o que não é o adequado para nos transmitir os conhecimentos do passado. Aos galegos dizem-nos que somos espanhóis que traduzido à linguagem madrilena é como dizer que somos castelhanos e portanto temos uma visão distorcida de nós próprios; aos portugueses diz-se que os galegos são mais uns espanhóis que falam castelhano e portanto uns maus irmãos não escolhidos mas não uns amigos que podemos escolher…. A distorção acrescenta-se aos olhos dos outros nós-próprios. E por isso chegamos à conclusão de que já não somos o mesmo povo, mas dous povos de costas viradas cujos problemas não devemos nem queremos partilhar.
  • Um território comum
Sobre o espaço comum que partilhamos sabemos que a nossa cultura nasceu no País do granito, nas terras rochosas do noroeste, terras verdes de prados e florestas onde o chamado Maciço Galaico-Duriense se apresenta como uma continuação do Cordal Cantábrico. É na Serra do Aire onde estas terras célticas deixas lugar às terras do sul estremenho, alentejano e algarvio que por tradição humana está mais vinculada ao mundo sulista do que ao mundo galaico nortenho mas que a história quis que se cristianizassem e se galaiquizassem. É o Portugal sulista que embora conservar um ar e uma tradição meridional e andaluzi o seu espírito é plenamente português. Mas isto é uma visão que temos de hoje porque em épocas anteriores ao Islão peninsular essas terras eram as que viram nascer o Vaso Campaniforme, o que viu nascer o megalitismo que tanta identidade nos dá aos galegos. Foram aliás, as terras da expansão sueva cujo Reino foi conhecido e reconhecido como o primeiro “Gallaeciense Regnum”. Todo isto conforma essa faixa marítima ocidental que vai dar a esse mar imenso e promissor chamado Atlântico, o Mar da Atlântida, o qual lhe deu viabilidade a Portugal como Nação e ajudou na expansão da nossa língua e da nossa cultura. Castelão, o nosso grande Daniel Castelão, disse uma vez no seu Sempre em Galiza, que Portugal encheu o mundo de nomes galegos… e assim foi, com certeza, ou pelo menos assim o vemos muitos galegos. E é esse mar o que dá tamanho de País grande a Portugal cujo espaço terrestre é um, mas o seu espaço marítimo sempre foi muito mais.

À Galiza esse mar também lhe deu expansão mas não territorial embora sim económica. É o mar das nossas riquezas e das nossas belezas, de ondas selvagens e de profundezas misteriosas que converteu à Galiza quando aqui se podia pescar, na terceira grande potência pesqueira do mundo. É o mar da Galiza marinheira, tão importante para a nossa realidade identitária como pode ser para Portugal.
  • Uma História comum
Neste tema já há pouca discrepância. Desde que os galaicos entram na História, os portugueses entram como galaicos num princípio, embora os lusitanos existam como uma prolongação dos primeiros ou vice-versa. Se considerarmos que o Portugal de hoje é um Estado galaico, e não lusitano por ter sido do norte galaico donde partiu a origem do país, a língua, a estrutura e organização territorial, a legalidade e todo o demais, teremos que partilhamos historicamente tudo: a Kalláikia céltica, a Gallaecia pré-romana, o Reino da Galiza medieval mal identificado e mal chamado de Reino de Astúrias, a continuação do Reino da Galiza também mal identificado e mal chamado de Reino de Leão… tudo, até que nasceu o conceito de Nação que se diz defendeu o nacionalismo francês e também Giuseppe Mazzini mas que já no século XII Afonso Henriques se viu na obriga de exercer para defender o seu direito a governar o seu novo Reino, assim reconhecido pelo Papa. Nasceu Portugal dum retalho da Galiza e nasceu como um ato de vontade política mas não como uma diferenciação étnica. Tal é assim que Agostinho da Silva, ideólogo da Lusofonia disse que “os portugueses são uns galegos aperfeiçoados”. Se é assim é que os galegos somos uns portugueses distorcidos por Castela mas não deixamos de ser mais uns portugueses descarrilados que precisamos nos encontrarmos com o resto da nossa gente para nos vermos onde devemos estar: juntos.


Poderíamos continuar narrando e debulhando esta nossa realidade comum, mas veja o leitor que se fizermos pormenorizadamente este trabalho de identificação galaico-portuguesa não chegaria um simples artigo para falarmos do tema. Um livro completo falando de cada um dos pormenores aqui narrados seria muito interessante e muito laborioso mas completamente útil para o nosso reconhecimento e a boa fé que totalmente certeiro na nossa auto-identificação não como dous povos mas como um só.
Como pode comprovar o leitor, a nossa vontade não é tanto narrar esta realidade assumida e conhecida por toda mente bem pensante quanto comunicar a necessidade de nos implicarmos no ser comum. Não pode haver português que ignore a Galiza, a sua realidade e a sua problemática como também não pode haver galego que ignore a de Portugal.
Bibliografia:
Fraga Iribarne, M: A Galiza e Portugal no Marco Europeu. Ed. Xunta de Galiza. 1991. Pag. 7 Tirado da Comunicação de Manuel Fraga Iribarne à Academia da História de Portugal com motivo da sua receção como Académico de Mérito. Lisboa 25 de Janeiro de 1991
Fraga Iribarne, M: Jornal do Arco Atlântico. 23 de Outubro de 1992. nº 1 Página 3


Linkografia:
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