R. Suarez Picalho |
Por Afonso Daniel R. Castelão e Ramón Suárez Picalho
In Nova Galiza, n.º 2 (20-IV-1937)
Como vosselência não deixaria chegar ao povo português a voz dos
patriotas galegos, queremos que, pelo menos, chegue a vosselência a
queixa dorida de dois galegos que sempre amaram Portugal. Asseguram que
vosselência crê em Deus. Não o sabemos… E não o sabemos porque Deus
―infinitamente bom, sábio, justo e, ademais, imortal― não quis ser
Ditador e concedeu-nos o livre arbítrio para que nós mesmos buscássemos
o caminho da felicidade, enquanto que vosselência ―cativo verme, que
se considera feito à imagem e semelhança de Deus― não teve dúvida em
aprisionar a liberdade do povo português, a asfixiar a livre emissão do
pensamento e submeter a nação portuguesa ao seu capricho. Grande
pecado de soberba, senhor Ditador! Não sabemos se vosselência é um
Ditador tão vaidoso como Mussolini e Hitler (vemos que não gosta tanto
dos fotógrafos); mais, ainda que o fosse, não cremos que vosselência
pretenda tapar com a sua figura os progenitores da Pátria lusa. Eles
conquistaram a independência da Nação portuguesa e vosselência está
jogando-a agora na roleta internacional, em conluio com os inimigos da
liberdade.
Não sabemos se a
História perdoará os seus delitos, tão graciosamente como a mais alta
hieraquia da Igreja lhe perdoa os seus pecados. Contudo, não se julgue
seguro no castelo de fumo que a imaginação de vosselência criou, porque
o povo tem um sentido incoercível de justiça e do seu cerne podem
surgir juízes terrivelmente vingativos. Mas no entanto é forçoso
reconhecer que vosselência manda hoje em Portugal. Por que ajuda
vosselência os militares espanhóis, que se ergueram em armas contra o
Poder legitimamente constituído? Mediu vosselência os riscos que de
semelhante ajuda podem derivar para o Estado português? Porque a
beligerância de Portugal na guerra civil espanhola é, simplesmente, uma
imprudência temerária, que não abona o talento de vosselência. Tenha
vosselência por bem seguro, além do mais, que a Espanha vai ser a campa
do fascismo internacional, porque vencer a um povo em armas, dentro do
próprio território, não é vencer a força máxima do seu pensamento nem
matar a razão que o assiste. A luz das estrelas não se apagará soprando
desde Roma. Agora bem; as ajudas fascistas prolongarão a guerra e
agravarão os seus resultados, em prejuízo, naturalmente, das concepções
que vosselência defende.
Mas nós
iremos falar somente como galegos para que apareça mais avultada a
gravíssima intervenção de vosselência. Sabe vosselência que Galiza tem
todos os atributos de uma nacionalidade: língua, terra, história, arte,
espírito, etc., e que, portanto, seria fácil fomentar ali um ideal
patriótico de carácter separatista; mas nós aspirávamos, modestamente, a
uma simples autonomia que garantisse o livre desenvolvimento da
cultura autóctone e que nos permitisse resolver os problemas vitais que
a morfologia social e económica de Galiza tem estabelecidos. Sabe
vosselência que Galiza apresentou às Cortes da República espanhola, três dias antes de rebentar o movimento subversivo, um Estatuto
autonómico proposto pela quase totalidade dos Concelhos e aprovado, em
plebiscito recente, por setenta e cinco por cento do Corpo eleitoral;
ou seja, depois de vencer com o mais rigoroso zelo as condições que a
Constituição exige. Crê vosselência, senhor Professor de Direito, que
nós realizámos algum atentado criminal? Pois a fronteira portuguesa
não se abriu para os autonomistas galegos, que fugiam da morte,
negando-lhes vosselência o direito de asilo a homens que viviam dentro
da Lei e que não cometeram maior delito do que defendê-la. E a polícia
de vosselência, a polícia de um país que aboliu a pena capital,
entregou muitos galegos para que fossem assassinados. Sabe vosselência
que Portugal reclamou e conquistou, violentamente, a sua independência
nacional, mais do que para romper a unidade hispânica, para não se
submeter à tirania centralista. Portugal não queria morrer assimilado
por Castela, e num arroubo de génio rompeu as amarras familiares, pediu
separação de bens e foi viver a sua vida na melhor frente do lar
comum, na grande frente do Atlântico. Não há dúvida que foi Portugal
quem quebrou a unidade hispânica. E fez bem. Agora, senhor Professor de
Direito, sabe vosselência que o “motivo patriótico” que invocam os
militares espanhóis, para justificarem o seu crime, foi provocado pela
generosidade constitucional, pois, segundo eles, a concessão das
autonomias regionais põe em perigo a “sagrada unidade da pátria”,
quando, na verdade, serve para fortificá-la. Sabe vosselência que os
militares facciosos defendem, somente, um sistema, um sistema unitário e
centralista, que causou a perda do nosso império colonial depois de
desintegrar a Península e acirrar novos separatismos. Sabe vosselência
que esses militares desprezam olimpicamente Portugal, sem o conhecer, e
guardam no seu interior um anseio irreprimível de reconquistá-lo pela
força, enquanto que os povos autónomos da República espanhola seriam
sempre uma garantia da independência de Portugal e um estímulo eficaz
de aliança peninsular. Sabe vosselência que o triunfo do fascismo em
Espanha supõe o regresso de Catalunha, Euzcadi** e Galiza à tirania
centralista, tirania que Portugal não suportou. E não falamos do que a
Portugal pode sobrevir-lhe do triunfo das ideias totalitaristas e a
participação de uma Espanha ensoberbecida no concerto europeu. Crê,
vosselência, senhor Ditador, que Portugal pode dignamente ajudar os
militares espanhóis no afã de abolir as autonomias e contribuir para a
morte da democracia na Europa? Pois vosselência ajuda a esses militares,
concede asilo generoso aos facciosos e aos políticos do velho sistema,
convertendo Portugal em “galinheiro de Espanha”. Sabe vosselência,
apesar de ser judeu, que Galiza e Portugal formam, etnicamente, um
mesmo povo. Foram-no no amanhecer da História e caminharam juntos muito
tempo, a falar e a cantar no mesmo idioma. Juntos ergueram um dos mais
belos momentos do mundo: a grande poesia lírica dos Cancioneiros
galaico-portugueses. Juntos criámos uma cultura e um modo de vida. E o
rio Minho era o nosso pai. Sabe vosselência que ainda depois da
malfadada separação, Galiza e Portugal queriam-se como dois namorados.
Portugal era o moço forte, que partiu para a guerra e Galiza foi a moça
que ficou a tecer saudades. Galiza dera a Portugal, como prenda de
amor, a fala e a arte; Portugal deu muitas vezes a Galiza o socorro do
seu braço forte. Sabe vosselência que a separação foi desventurada. A
Portugal faltou-lhe a força “frenética” de Galiza e enloqueceu; à
Galiza faltou-lhe a força “simpática” de Portugal e esmoreceu. A
Portugal faltou-lhe o “caminho estrelado da Europa” e à Galiza
faltou-lhe a continuidade na História. Portugal esqueceu-se da Galiza e
desgastou o seu sangue com misturas de cor; Galiza esqueceu-se de
Portugal e ficou estéril para conceber. Pois bem, senhor Oliveira: sabe
vosselência que os galeguistas éramos algo mais que políticos.
Respeitávamos, como não! a fronteira que separa os dois Estados
peninsulares: mas queríamos asas para voar e comunicarmos convosco,
sobre o Minho, por cima dos carabineiros e dos guardas fiscais.
Queríamos voltar a falar e cantar no mesmo idioma. Com canto amor
pensávamos em Portugal! Deve saber vosselência que o nosso amor a
Portugal valeu-nos o ódio dos chamados “nacionalistas” espanhóis e que
foi justamente esse amor o delito mais grave que se nos imputa. Crê
vosselência, senhor Oliveira, que os galeguistas estávamos infectados
de alguma enfermidade perigosa para o povo português? Pois vosselência
tratou-nos como empestados, metendo galeguistas em cadeias imundas ou
entregando-nos aos assassinos da “Falange Espanhola”. Sabe vosselência
que os intelectuais portugueses e galegos começavam a formarem uma
comunidade cultural que seria outro expoente da nossa estirpe
atlântica. Chamávamo-nos “irmãos”, e Rosalía de Castro era o “corpo
santo da saudade”. Um poeta amigo de vosselência, quis engaiolar a
Galiza com este chamamento: “Deixa Castela e vem a nós!” Sabe
vosselência que os galeguistas fechávamos os ouvidos a todo chamamento
ilícito; mas queríamos ser fiéis aos legados da tradição, e cada vez
nos sentíamos mais empurrados face a Portugal. O rio Minho queria
juntar-nos de novo. Sabe vosselência que os jornais portugueses, submetidos à censura governativa, seguiram com simpatia os incidentes
do movimento autonomista em Galiza e não dissimularam o seu
contentamento ante o resultado favorável do plebiscito estatutário.
Outro tanto fizeram já quando se resolveu o pleito catalão. Tudo nos
fazia supor que Portugal ansiava uma estruturação federativa do Estado
espanhol, e nós sonhávamos, para quê negá-lo, com que algum dia se
consagrasse definitivamente a irmandade galaico-portuguesa. Pois bem,
senhor Oliveira: vosselência matou as nossas ilusões. Crê vosselência
que se pode ajudar descaradamente aos imperialistas espanhóis? Pois
vosselência tornou-se cúmplice desses assassinos que cometeram em
Espanha o crime mais arrepiante que a História regista. E vosselência
fechou as portas, sempre abertas, da nossa República, aos seus próprios
amigos, que algum dia renderão contas ante a justiça inexorável do
povo português. Sabe vosselência que na Galiza, ainda irmã de Portugal,
cometeram-se muitos milhares de assassinatos. Massacrou-se o melhor e
mais puro da nossa mocidade. Fuzilaram-se centenas de mulheres.
Mataram-se rapazes cheios de vida na presença de seus pais. As estradas
apareciam, e ainda aparecem, diariamente orladas de cadáveres
desfeitos, que não podem identificar-se. Sacavam-se da cadeia os
presos inocentes para serem assassinados pela noite. As autoridades
ordenavam fuzilamentos sem prévia formação de causa. Enfim; abonda
dizer que era uma honra ser julgado e fuzilado “oficialmente”. Sabe
vosselência que falamos em tempo passado, mas que ainda hoje continua o
massacre dos cidadãos galegos. Pelos jornais da nossa Terra, submetidos ao controlo militar, verá vosselência a insaciável
criminalidade dos seus aliados e amigos. Sabe vosselência que para
reconstruir o nosso lar desfeito provavelmente não nos fica mais que a
reserva dos galegos que andam pelo mundo? Pois bem; estes galegos
vingarão os nossos mártires e criarão uma nova Galiza que já não medirá
sonetos em louvor de Portugal. Crê vosselência que os bons galegos, enlutados para sempre, podem viver sem amaldiçoar? Pois nós dizemos-lhe
que vosselência causou o luto de muitas famílias galegas por não abrir
generosamente as portas de Portugal. E dizemos-lhe mais: vosselência
será para os sobreviventes de Galiza algo menos que um assassino; será
um cúmplice de assassinos.