Por
Carolina Hortsman
“Não
há nada com mais fascínio do que examinar como a
memória regressa; para alguns, um cheiro é o detonante,
para outros, a linha do rosto, a cor de um objeto ou ainda mais, uma
palavra que há de fazer surgir inúmeros pequenos
instantes que hão de confirmar o conjunto da memória”
Brousseau 1991
Aproveitando
os dias de carnaval, quisemos agasalhar uns amigos que visitavam
Galiza pela primeira vez com um interessante percurso pelos lugares
mais antigos e significativos de Ourense. Foi chegar a São
Pedro de Rochas, e os nossos queridos visitantes deram-se conta de
algo curioso que a nós parece ter-nos “vacinados” contra
este tipo de horrores. Puderam comprovar, ao quererem fotografar a
rocha fundacional deste mosteiro, datada em 611 da era Hispânica
(equivalente a 573 da Era cristã) que esta estava custodiada
no Museu Arqueológico Provincial de Ourense e no seu lugar
acharam uma maravilhosa fotografia a cores reproduzindo o objeto tão
desejado
Deslocamo-nos
até a cidade para eles poderem comprovar o que lhes estávamos
a contar no caminho e que repete toda Oficina de Turismo: “ El
Museo lleva cerrado más de 10 años, por lo menos en 4
años más no abrirá sus puertas”. A pedra
levava já muitos anos repousando na cave-armazém do
Instituto Santa Maria de Europa, sem acesso aos visitantes.
Entre
a Fantasia e a Realidade
Estes
últimos dous anos, perguntando a pessoas próximas ao
mundo da arte, a responsáveis de oficinas de turismo e a
transeuntes despistados, conseguimos recolher as mais interessantes
respostas dos cidadãos perante tamanho e tão lamentável
encerro: desde que 'um homem vive aí apetrechado com as obrs
de arte' vivendo numa constante êxtase por desfrutar do saber
de tanta beleza (quase com um mal de Stendhal às costas); até
que têm achado mais e mais vestígios ao irem escavando,
o que demoraria a abertura em, pelo menos mais 7 anos.
Lendas
urbanas? Quem sabe...O mais triste do assunto é que a gente
deixou de pôr em questão às suas autoridades que
levaram a isto, deixaram de procurar respostas.
Tantos
anos sem acesso à própria cultura deixam a gente sem
necessidade de acharmos respostas, totalmente à deriva,
permeáveis perante qualquer cultura de fora. Sabemos que o
contato direto com o património impulsiona o sentimento de
pertença a um povo, afiança e estimula a consciência
e a identidade com o território e o povo em que se vive; cria,
em definitiva, uma total integração com o contorno e a
sua cultura. A cidade de Ourense leva mais de 10 anos sem ter acesso
ao seu património, à totalidade dos tesouros da sua
região ourensana, à maravilha da sua história.
Teve que conhecê-la e bebê-la como um conta gotas,
saboreando só uma obra exposta por mês num blogue
pendurado da net. Como se fosse um grande presente que devêramos
agradecer a tão magnânima mão amiga que achega
isso 'pelo bem dos cidadãos', fazendo-nos pensar que tudo é
normalidade e livre acesso a esse património tão
valioso.
Poderíamos
tentar compreender e empatizar com os acontecimentos reais que nos
levaram a nos acharmos nesse ponto 'zero', nesse momento de 'animação
suspensa' do património ourensano...mas 10 anos (na realidade
mais de dez!) falam por si sós.
Se
tivéssemos que compará-lo com algum outro Museu em
dificuldades, vem-se-me à cabeça automaticamente o
desastre ocorrido em Bagdá em 2003, momento em que o Museu foi
atacado e saqueado ainda quando meses antes da invasão do
Iraque se pedira resguardo e proteção especial deste às
tropas dos EUA. Talvez o que muitos não sabem é que
este museu foi durante muitos anos “o cofre do tesouro privado de
Saddam Hussein” e se manteve fechado desde o ano 1991 até o
ano 2000, podendo unicamente ser visitado pelo seu círculo de
amigos próximo, proibindo o acesso ao público.
Ainda
com todas as dificuldades, os destroços, saques e a metade das
salas fechadas abriram as suas portas ao público em 2009, só
6 anos depois de tamanha destruição, sabendo que a
história patrimonial é a força para o ressurgir
dum povo, tendo total consciência de que não se pode
abalizar a destruição cultural.
O
acontecer em Ourense...
O
modelo de organização compartilhada por duas
administrações, não só demonstra um
fracasso do ponto de vista da gestão, mas também um
desinteresse total por levar a bom porto esta longa agonia
patrimonial. Em definitiva, uma negligência de proporções
maiúsculas. Por um lado a Administração Central
desconhece a realidade ourensana completamente e envia os dinheiros e
o pessoal ao edifício de Santa Maria de Europa (A Carvalheira)
que basicamente funciona como uma cave-armazém sendo em origem
um Liceu de formação profissional. Por outro lado a
“Xunta” que não é capaz de gerir de maneira
adequada as instalações, supostamente, por uma
incapacidade de gerar acordos com a entidade titular... estando pelo
meio a Deputação Provincial...Durante estes 10 anos
realizaram-se escavações arqueológicas,
implementou-se uma sala de exposições (pequena, para
todo o património que detenta o Museu) e manteve-se na tabela
também 'a peça do mês'. Olha, que também
não afirmamos que ficaram de braços cruzados sem
fazerem nada, simplesmente, fazer notar que os esforços são
poucos, estão mal focados ou mal direcionados ou simplesmente,
não há boa vontade para promocionar e pôr em
valor o nosso património. As notas impressas às que
pode aceder qualquer pessoa que procure alguma informação
fazem referência a que estaria 'fechado por obras de
reabilitação e ampliação'. Quando o
cidadão comum vai ter acesso real ao interior do Museu para
comprovar por si próprio esses avanços?
Faz
poucos dias, percorrendo os arredores, pudemos comprovar com assombro
as deploráveis condições em que estava o
edifício (antigo Palácio Episcopal e anteriormente
Palácio Real Suevo...e antes Pretório Romano). Achamos
os seus muros riscados com graffitti, grande parte das janelas
quebradas, sujidade no contorno que rodeia o edifício e dentro
da sala expositora dos miliários que dá à rua
cheia de folhas secas, terra, lama seca e excrementos. São
algumas das amostras que tão insigne edifício apresenta
ao cidadão ourensano e visitante. As perguntas, fazem-se
evidentes: Que é o que acontece realmente no Museu de Ourense?
A que é que se deve a sua tão deteriorada façada?
O interior está nas mesmas condições? Quem
guarda pela exposição dos miliários na sala
visivelmente suja, com uma estética totalmente deteriorada (um
deles deitado no chão escondido atrás dum pilar)?
Talvez a câmara de segurança dirigida para eles e a
entrada de acesso a uma ala do Museu está ativa? Se o Museu
leva fechado mais de 10 anos, continua a funcionar o sistema de
segurança? Está obsoleto? Ou é simplesmente um
'automatic doorman'?
O
Buraco negro de objetos patrimoniais
Como
relatávamos no começo, ao comentarmos sobre a pedra
fundacional de São Pedro de Rochas (porque nos guias em galego
sempre põe 'Rocas'?), toda obra importante, única e sem
precedentes parece cair nas mãos fantasmais da cave-armazém
-não podemos chamar-lhe de outra forma-, onde vão parar
as peças do Museu Arqueológico de Ourense, que é
o edifício da Santa Maria de Europa no bairro da Carvalheira.
Ficamos condenados a ver uma e outra vez gigantografias a cor ou
reproduções de duvidosa qualidade, enquanto os
originais passam a fazer parte das listagens sob o lema: “Original:
Museu Arqueolóxico de Ourense”. Como tantas outras peças
de incalculável valor que deveriam estar expostas, em contato
com o público e bem cuidadas.
Não
há dinheiro para o Museu, mas pode-se andar pelos cantos de
Europa fazendo promoção do “Paraíso Termal”,
esbanjando grandes quantidades de dinheiro, deixando a um lado a
cultura que se poderia promocinar a esse turista, duma cidade com
tanta história como é Ourense. O turista atual não
só vem remolhar o corpo nas águas quentes mas é
um grande curioso por conhecer história e arte, um verdadeiro
investigador que tenta submergir-se no quotidiano das ruas, na
gastronomia, na língua das gentes que habitam estes cantos da
Europa...assim como a história e o seu passado.
Gastam-se
esforços e dinheiro num completo e também, porque não
dizê-lo, necessário trabalho arqueológico das
Burgas (remodelação de edifícios incluídos),
com dous mil metros quadrados onde nos apresentam como a “peça
estrela” uma piscina romana, mas não atendem as necessidades
arqueológicas culturais e históricas anteriores a Roma.
Talvez é que antes da chegada dos romanos não havia
cultura aqui? Não havia culto às águas? Não
havia religião? Não havia crenças? Não
eram os nossos antepassados?
Por
parte da “Xunta” também não há dinheiro para
atender o Museu mas gastam milhões de euros na construção
duma cidade da Cultura (ainda sem terminar) no monte Gaiães em
Santiago de Compostela, de duvidosa utilidade e de duvidosa
imparcialidade política (a Avenida principal chama-se 'Manuel
Fraga')
Tudo
isto faz-me lembrar uma citação de Philip Shepherd que
dizia “Se estiveres dividido do teu corpo, também estarás
dividido do corpo do mundo, que portanto aparece como outro distinto
de ti, ou separado de ti, em vez de viver um 'continuum' ao que
pertences”. Enquanto, a cidade e os seus habitantes vão
continuar aguardando 'qualquer forma de milagre' que abra essas
portas que os separam de toda a magia e a grandeza que viveu na
antiguidade. Talvez possamos dar-nos conta aos pouquinhos de que o
Museu não só tragou os objetos como se dum buraco negro
se tratasse, mas também as nossas cabeças...
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