Por David Outeiro
Lembro
a primeira vez que me falaram dum encontro com ela...
Era
uma das primeiras tardes do outono do ano 2011. Tive a ideia de ir
ver o castro de Pena Rubia, onde aparecera uma ara à deusa
Navia. Apanhei o meu Terrano como fazia habitualmente porque poderia
ser que aquele dia, como muitos outros, tivesse de ir até
algum lugar onde só chegassem os veículos com tração
às quatro rodas e cheguei até as proximidades do Rio
Minho, que naqueles dias tinha pouca água. Fui por uma estrada
que atravessava uma formosa carvalheira, cruzei para a outra beira e
em pouco tempo vi claramente o Castro, mesmo ainda antes de ver o
cartaz que indicava que estava entrando nele. Na entrada da antiga
cidade célta havia um espigueiro com uma cruz céltica e
um galo ao pé. Acarão do hórreo havia um homem
idoso sentado, que estava a olhar para mim; a minha intuiçao
fez com que eu fizesse uma paragem e arrumasse o meu carro. Sentei-me
no banco onde ele estava e começamos
a falar; falou-me duma preocupação que eu
compartilhava, a de tantas semanas sem chuva, situação
que tinha deixado tudo seco. Continuamos a conversa e falou-me de que
naquela altura ele era o dono do castro mas parecia não saber
nada da ara de Návia... ou de qualquer pedra com letras
gravadas, já que com essas palavras eu lhe fiz a pergunta. O
senhor falou-me duma mamoa que estava a procurar e sinalou-me o cimo
duma montanha. Quando chegou o momento de me ir, ja era um bocado
tarde e tinha de subir até o alto assim que me despedi
dizendo-lhe que voltaria vê-lo.
Não
demorei muito em voltar por lá com tão boa sorte que
achei de novo ao homem em aquele lugar subindo a encosta que dá
ao castro. Baixei para falar com ele novamente, para saudá-lo
e a conversa prolongou-se bem tempo. Perguntei-lhe por lendas da
zona, mas dissera não conheçer nenhuma. Ainda assim
houve um momento em que ele me disse: “mas....sim há alguns
contos”. Ouvi com atenção e falou-me da gente de Pena
Rubia que tinha escutado ao trasno; falou-me também
dalguma “maldição” que tinha um homem que fora a
tirar pedras do castro sem “prenda da igreja”; falou-me daqueles
que foram na procura de tesouros às mamoas da zona. Eu tinha a
perceção de que o que aquele senhor me estava a contar
não eram lendas para ele, eram uma realidade que se contava
para ser transmitida diante do fogo da lareira... Quando a conversa
foi derivando em mais cousas mercê à confiança
acabou falando-me dum encontro com uma misteriosa e poderosa mulher.
Contava -dizia ele-, a historia dum homem apoutado do lugar que ia
transitando um dos vieiros daqueles montes. Por uma vez presenciou
algo estranho: uma mulher apareceu no meio do caminho sentada
enquanto estava a fiar. O homem não podia passar pelo que lhe
disse-lhe á mulher dum jeito algo rude: “Afasta-te ou
afasto-te!?”. A mulher negou-se a sair do caminho, ergueuse e
começou a lutar com o homem. Enquanto pelejavam rodavam pela
encosta abaixo até onde estava o rio. Como parecia que o homem
tinha as de perder ele percebeu que aquela era uma mulher
sobrenatural e portanto começou a “fazer cruzes”. Ao fazer
as cruzes, o homem conseguiu libertarse dela, que zangada chegou a
manifestar: “Se não chegas a fazer as cruzes, mato-te”.
Aquela era uma mulher que fiava (o destino dos homens), uma poderosa
e guerreira que levava os homens ao além ao atravessar o
rio!... Uma mulher pagã que só o cristianismo (as
cruzes) puderam frear... ainda que lá continuava!. Era Návia
Corona! Morrigan!, a deusa guerreira e agoireira da morte!. Aquele
homem não conhecia a ara, mas parece ser que alguém, no
mesmo lugar onde apareceu o jazigo, deu com a mesma deusa!.
Vamos
continuar a recompor o nosso quebra-cabeças...
Há
um fermoso romance recolhido em Cerdedo no ano 1904 por Vítor
Said Armesto duma velha esmoleira chamada Luzia Domingues. O romance
musicado por “Fuxan os ventos” fala duma figura mitológica,
a Lavandeira...diz assim:
Na
mitología galega, a Lavandeira é um espírito
feminino, uma mulher sobrenatural que pertence ao outro lado, ao
outro mundo. A aparição manifesta-se na beira dos rios
ou também nos lavadoiros. É uma mulher de aspecto
temível, velha e enrugada segundo dizem alguns. Emite
horríveis vozes, laios e berros...enquanto lava a roupa cheia
de sangue. Essa é a roupa dos que vão morrer, por isso
a Lavandeira é agoireira da morte e o seu aviso é
temido. Esta aparição pode fazer uma petiçao
àqueles que dão com ela; a de ajudar a lavar a súa
roupa. No caso de aceitar a petição os infelizes
deverão escorrer as peças torcendo-as no sentido
contrario a ella, já que se o fazemos no mesmo sentido a nossa
morte será segura e acabará levando-nos com ella ao
Além.
Na
Ilha de Ons, nas costas de Ogrobe, conta-se a história dum
homem que ousou achegar-se à Lavandeira. Neste caso
lavandeiras, porque são três mulheres que ele achou
lavando uma noite. Achegou-se por curiosidade e perguntou-lhes que
era o que faziam lavando a roupa àquelas horas da noite. Uma
delas ergueu-se e colhendo o homem pelas suas roupas lançou-o
sem esforço até uma silveira. O medo paralisou-o de tal
jeito que ficou na silveira toda a noite até que pela manhã
os vizinhos que por ali passaram tiveram que tirá-lo dali.
Na
Irlanda existe “the Washer-Woman at the ford” (Lavandeira do vão)
ou as Banshee (As mulheres do Sidh). As Banshee ao igual que as
nossas Lavandeiras são um agoiro de morte. Lavam também
as roupas cheias de sangue emitindo os mesmos berros e laios do que
as nossas. Pode aparecer como mulher jovem e fermosa, como uma dama
ou como uma temível velha -curioso triplo aspecto da deusa ao
igual que na aparição da Ilha de Ons-. Pode aparecer
também com a forma de corvo viaraz, arminho, donicela ou
lebre. As banshee têm a particularidade de estarem vinculadas
àlgumas familias importantes. Quando alguém da familia
vai a morrer, a Banshee associada ao clã começa a
chorar. A apariçao de varias banshee à vez indica a
morte de alguêm importante ou sagrado.
Na
Escocia é conhecida pelo nome de Bean Nighe ou
Nigheadaireachd. Aparece igualmente lavando as roupas de aqueles que
vão morrer em rios ou lagos mas têm alguma curiosa
particularidade como é a de às vezes aparecerem com os
pés palmeados como as aves aquáticas. Nas crenças
célticas, este tipo de aves têm a ver com as mensageiras
do Além. Talvez por causa da natureça das aves e que ao
morarem em meios aquáticos estejam no limiar do além.
Se uma pessoa consegue mamar do seu peito, pode transformar-se no seu
filho adoptivo e pedir um desejo,como por exemplo saber o nome
daqueles que vão morrer. O escritor Dorothy K. Haynes narra
uma história dum encontro com uma destas mulheres
protagonizado por uma menina chamada Mary. Um dia a menina voltava à
sua casa quando escutou um ruido no rio. Ela foi pensando que acharia
a sua mãe lavando a roupa mas achou uma mulher com má
cara que tinha pequenos pés palmeados como os patos. Mary
achegou-se com cuidado mas a mulher bateu nela. Por causa disto, as
pernas de Mary paralisaram-se e não pôde caminhar
ficando no caminho. A sua mãe conseguiu achá-la após
uma angustiosa procura e levou-a para a casa. A história tem
um final trágico com a morte de Mary. A Bean Nighe...estava a
lavar a roupa da própria menina.
Em
Gales é conhecida com o nome de Cyhyraeth (fantasma ou
esqueleto). É um agoiro de morte que emite uma voz que soa
três vezes, um triple aviso que cada vez pronuncia com menos
intensidade. Também aqui se fala do facto de ter que lavar a
roupa no sentido contrario aquela pessoa que consegue dar com ella.
De fazê-lo assim concederá 3 desejos.
Na
Bretanha armoricana é conhecida com o nome de Tunnerez noz. Ao
igual que as outras apariçoes análogas lava no rio as
roupas dos que vão morrer aguardando até que alguêm
caia na sua armadilha e possa levá-lo ao além.
Como
podemos ver é uma aparição com características
idénticas ou muito similares nas terras célticas da
Galiza, Escocia, Gales, Irlanda e a Bretanha.
Mas
agora chega o momento de desvendar a antiga identidade das
Lavandeiras. Segundo contam as sagas do herói guerreiro
céltico Cúchulainn, Badb apresentouse antes da última
batalha do combatente como um agoiro de morte. Cúchulainn vai
cara a sua ultima batalha, quando se conta;
“Não
foram muito longe do castro (de Emain Macha) quando acharam uma bela
donzela, bem proporcionada, diante de Áth na Foraire na chaira
de Emain, que estaba gemendo e queixando-se à vez que
esmagava e lavava restos vermelhos de troços de carnes de
feridas feitas nacos nas beiras dum vão”
O
druida Cathbad interpretou isto como um agoiro e disse-lhe a
Cúchulain que a mulher é Ingin Baidbhi, filha de Badb,
que o lavar e o berrar presagia a sua morte:
“-Pequeno
cão-diz Cathbad-. Sabes o que está a fazer a jovem? O
que está lavando são as tuas roupas. Os seus choros e
berros ao lavá-las é a sua forma de exprimir a tua
próxima morte quando te enfrentes ao exército de Medb.
Segue o meu conselho e dá a volta.
-Caro
mestre... agradeço muito o teu conselho, mas tu sabes, como eu
sei, que o meu fim está próximo e que vou cair lutando.
Não tentes que o evite, porque tanto se vou a essa batalha
como se fico lá, a minha morte combatendo está
próxima.”
Há
outra saga na que se fala do rei Cormac onde também aparece
Badb como agoireira. A seguinte cita é da saga “Togail
Bruidne Da Choca”:
“...Cormac
Connloingeas, filho de Conchobar mac Nessa, rei do Ulster, vai de
caminho desde Connacht até Ulster para ser coroado após
a morte do seu pai e ao igual que Cúchulainn, o destino
obriga-o quebrar durante a viagem várias geissa (tabus) que o
druida Cathbad lhe tinha dito ao nascer. Quando ele e os seus 300
seguidores chegam ao a Rio Shannon, acham uma mulher vermelha à
beira dum vão lavando o seu carro de guerra, os assentos e os
arneses. Quando ela baixava a mão, a água do rio
volta-se vermelha. Mas quando erguia a mão sobre a parte
superior das augas, nãoo ficava nem uma gota de água no
rio, já que toda era levantada também no alto; e desse
jeito cruzaram o rio sem se molharem os pés.”.
Há
uma história bélica muito posterior, acontecida na
Escocia. No “Cáithréim Thoirdhealbhsigh” fala-se da
Batalha de Dystert O'Dea que teve lugar em 3 de Maio de 1318 onde
aparece Badb:
“Richard
de Clare, o chefe dos normandos, dirigir-se-ia até o que
acreditava ia ser uma fácil vitória sobre os O'Deas
Dystert. Quando ele e o seu exército estavam prontos a cruzar
o Rio Fergus, viram no vão uma horríbel Badb lavando as
armaduras e luxosas capas até que delas caia sangue vermelha
que tingia as águas do río dessa cor. De Clare pediu a
um intérprete irlandês que lhe perguntasse á
mulher de quem eram essas armaduras e roupas. Ela respondeu “que
eram as armaduras, vestiduras e outras vestes do próprio De
Clare, seus filhos e o resto dos seus seguidores, muitos dos que não
demorariam muito em morrer.” A mulher identificou-na como “In
Dodárbrónach- A escura das augas”. De Clare ordenou
então que a ignorassem, dizendo que ela viera beneficiar ao
Clan Turlough para evitar a expedição contra eles.
Finalmente a profecia cumprir-se-ia e De Clare e os seus foram
derrotados e mortos...”
No
“Cáithréim Thoirdhealbhsigh” também se fala
da aparição de Badb na batalha de Corcomroe Abbey,
North Clare, em 15 de agosto de 1317.
O
rei irlandês recebe a visita de Aoibheall, uma Badb. Citando a
Manuel Alberro em ”Diosas celtas”:
“Numa
descrição do S XII da Batalha de Clontarf (1014) que
pus fim às guerras com os viquingues e o seu poder em Irlanda,
Aoibheall aparaceu-se-lhe a Brian Ború, rei supremo da
Irlanda, a noite anterior da batalha, e predisse que morreria nessa
luta, que o primeiro dos seus filhos que ele visse na manhá da
batalha seria o seu sucesor e próximo rei.”
Falamos
de que Badb se apresenta em forma de mulher lavandeira mas como o seu
nome indica, também é um corvo viaraz. Nas crenças
galegas o corvo é um animal de mal agoiro, porque é um
mensageiro do Além que pode anunciar a morte. Existe também
a crença no “passaro da morte”, o qual se apresenta de
noite laiando, falando com voz lúgubre ou cantando. A coruja
também pode dar este aviso.
Diz
a Táin Bo Cuailnge:
“A
Morrigan pôs-se em forma de pássaro sobre uma pedra
vertical que havía em Temair Cuailnge. E falou assim (a Dom
Cuailnge);
(…)
Corvos
sobre os sanguentos cadáveres, chairas cheias de guerreiros
mortos, heróicos guerreiros abatidos pelo pó, guerra
sem fim, gado em tropel à carreira, batalhas em Cuailnge, os
laios ominosos de Badb no lusco-fusco do campo de batalha, filhos
mortos, maridos mortos, camaradas mortos, morte! morte!”
A
deusa também se lhe aparece a Cúchulainn numa ocasião
em forma de corvo, dizendo o guerreiro: -A aparição dum
pássaro neste lugar é de muito mal agoiro!
Sabemos
também que a morte de Cúchulainn chega (depois da
aparição da lavandeira) quando um corvo se põe
sobre ele.
A
deusa da morte apareceu perante o herói durante o transcurso
da súa vida numa ocaisão com fim positivo:
“A
Morrigan, na época de Cúchulainn , acostumava a
interferir nos assuntos de Irlanda, instigando guerras e pelejas. Ela
foi quem numa ocasião levantou Cúchulainn, quando ele
era muito jovem, sobre o seu leito e quando estava a ponto de ceder
ante o esconjuro mágico que estava sendo utilizado contra
ele”.
Como
podemos olhar Mórrigan (Grande Rainha), Badb(o corvo viaraz) e
Macha (A chaira) são três manifestações
“sombrías” duma mesma deusa. Uma deusa que não
participa diretamente na guerra mas que interfere nos seus resultados
com a sua magia na forma dum corvo viaraz. Uma agoireira de morte que
costuma aparecer na forma duma Lavandeira. Uma deusa muito ligada com
a morte e portanto com a transformação, o renascimento,
o fim dum ciclo. A sua ligação com os cursos de água
é clara, já que no mundo céltico são um
limiar, uma fronteira que nos permite fazer um trânsito ao
Além.
Vemos
a obviedade de ser uma divindade comum nas religiões célticas.
Por isso a Lavandeira aparece tambêm na Galiza, como fruto duma
origem comum. Na minha opinião, esta é a identidade de
Návia, que num ara vai acompanhada do epíteto Corona,
quer dizer, chefa dum exército. É por isso que há
também rios com o seu nome, por causa de que eram um lugar de
trânsito ao Além onde se podia aparecer a deusa. De
muitas más evidencias falaremos em próximos artigos.
Na
Gália aparece com o nome de Cathubodva Bodua e pode ser a
mesma Nantosvelta que se tem representado associada ao corvo viaraz.
E
passaram milénios e passaram séculos e hoje na Galiza,
a Morrigan, A Grande Rainha continua a estar presente.
Nota;
Há confusão sobre a associação de Badb
com os corvídeos. O corvo(Corvus corax) e o corvo viaraz
(Corvus corone) não são a mesma espécie. Na
minha opinião Badb está associada ao Corvus corone e
Lugh ao Corvus corax, de maior tamanho.
2 comentários:
Un relato que engancha; tanto que es necesario volver a el. Noraboa
Maravilha! Suso M.
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